domingo, 18 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 21 - Tia Kitty ao resgate

EU JÁ TINHA VISTO FOTOS DA CRIATURA ANTES, mas fotos não chegam nem perto de captar o quanto ela é horrível ao vivo.
— O animal Set — anunciou Bastet, confirmando o que eu temia.
Lá embaixo, a criatura andava em volta do monumento, deixando pegadas na neve recém-caída. Tive dificuldade para perceber seu tamanho, mas devia ter pelo menos o dobro do de um cavalo, com pernas igualmente longas. O corpo era musculoso e esguio, muito mais que o natural, com pelos de um tom cinza-avermelhado e brilhante. Não seria difícil confundi-lo com um enorme sabujo, exceto pela cauda e pela cabeça. A cauda era de réptil, bifurcada na ponta e com extremidades triangulares, como tentáculos de lula. Movia-se de um lado para o outro como se tivesse vida própria.
A cabeça da criatura era a parte mais estranha. As orelhas enormes e pontudas lembravam as de um coelho, mas tinham a forma de casquinha de sorvete, enroladas para dentro e mais largas no topo que na base. Podiam girar quase trezentos e sessenta graus, de forma que ouviam tudo. O focinho da criatura era longo e encurvado como o de um tamanduá, mas tamanduás não têm dentes pontiagudos e afiados.
— Os olhos dele estão brilhando — comentei. — Isso não pode ser bom.
— Como você consegue ver de tão longe? — Sadie quis saber.
Ela estava de pé a meu lado, tentando enxergar a figura pequenina lá embaixo, e percebi que minha irmã tinha razão. O animal estava pelo menos cento e cinquenta metros abaixo de nós. Como eu conseguia ver os olhos dele?
— Você ainda está enxergando como o falcão — explicou Bastet. — E tem razão, Carter. O brilho nos olhos significa que a criatura nos farejou.
Olhei Bastet e quase tive um ataque. Os cabelos dela estavam em pé, como se tivesse enfiado o dedo em uma tomada.
— Ah, Bastet? — chamei.
— O que é?
Sadie e eu nos olhamos. Ela moveu os lábios formando a palavra medo. Lembrei como a cauda de Muffin sempre ficava arrepiada quando algo a assustava.
— Nada — respondi. Se o animal Set era perigoso a ponto de deixar nossa deusa de cabelo em pé, só podia ser um mau sinal. — Como vamos sair daqui?
— Você não entende. O animal Set é o caçador perfeito. Se nos farejou, nada poderá detê-lo.
— Por que o chama de animal Set? — perguntou Sadie, nervosa. — Ele não tem nome?
— Se tivesse — respondeu Bastet — você não ia querer pronunciá-lo. Ele é conhecido simplesmente como o animal Set: a criatura simbólica do Lorde Vermelho. Tem a mesma força, a mesma astúcia... e a mesma natureza maléfica do Lorde.
— Encantador — comentou Sadie.
O animal farejou o monumento e recuou, rosnando.
— Parece que ele não gosta do obelisco — notei.
— Não — concordou Bastet. — Tem muita energia do Maat. Mas isso não o deterá por muito tempo.
Como se a ouvisse, o animal Set saltou para a lateral do monumento. Começou a escalar a parede como um leão escala uma árvore, enterrando as garras na pedra.
— Agora complicou — alertei. — Elevadores? Uma escada?
— Os dois são lentos demais — afirmou Bastet. — Afastem-se da janela.
Ela mostrou suas lâminas, com as quais cortou a vidraça. Depois, com um soco, livrou-se do que restava dela, disparando o alarme. O ar gelado invadiu a sala do observatório.
— Vão ter que voar — Bastet gritou para ser ouvida, por causa do vento. — É a única saída.
— Não! — Sadie empalideceu. — O papagaio de novo não!
— Sadie, tudo bem — disse ela.
Sadie balançou a cabeça apavorada.
Eu agarrei sua mão.
— Estou com você. Garanto que vai voltar à forma humana.
— O animal Set está no meio do caminho — avisou Bastet. — O tempo está acabando.
Sadie olhou para Bastet.
— E você? Não pode voar.
— Eu vou pular. Gatos sempre caem em pé.
— São mais de cem metros! — gritou Sadie.
— Cento e setenta — confirmou Bastet. — Vou distrair o animal, ganhar algum tempo.
— Você vai morrer. — A voz de Sadie sugeria que ela estava muito perto de ter um colapso. — Por favor, não posso perder você também.
Bastet parecia um pouco surpresa. Depois de um instante, ela sorriu e pôs a mão no ombro de Sadie.
— Eu vou ficar bem, querida. Encontrem-me no aeroporto Reagan National, Terminal A. Preparem-se para correr!
Antes que eu pudesse responder, Bastet pulou pela janela. Meu coração quase parou. Ela mergulhou diretamente para a calçada. Tive certeza de que morreria, mas, enquanto caía, ela abriu braços e pernas e pareceu relaxar.
Bastet passou direto pelo animal Set, que soltou um rugido horrível, como o grito de um homem ferido no campo de batalha. Depois ele se virou e saltou atrás dela.
Bastet caiu em pé e começou a correr. Devia estar a uns 90 km/h, fácil. O animal Set não era tão ágil. Ele caiu com tanta violência que o pavimento rachou. A criatura cambaleou alguns passos, mas não parecia estar ferida. Então saltou na direção de Bastet e correu, e logo começou a se aproximar dela.
— Ela não vai conseguir — gemeu Sadie.
— Nunca aposte contra um gato — retruquei. — Precisamos fazer nossa parte. Pronta?
Ela respirou fundo.
— Tudo bem. Vamos, antes que eu mude de ideia.
Instantaneamente, um papagaio de asas pretas apareceu na minha frente, batendo as asas para manter o equilíbrio no vento forte. Eu me transformei no falcão. Foi ainda mais fácil que antes.
No momento seguinte nós voávamos no frio ar matinal sobre Washington.
Encontrar o aeroporto foi fácil. O Reagan National estava tão perto que eu podia ver os aviões aterrissando na pista.
Difícil foi lembrar o que eu estava fazendo. Toda vez que via um rato ou um esquilo, guinava instintivamente em sua direção. Algumas vezes estive prestes a mergulhar e precisei lutar contra o impulso. Uma vez olhei para trás e percebi que tinha me distanciado mais de um quilômetro de Sadie, que também se distraía com algumas presas. Tinha de voar ao lado dela para chamar sua atenção.
É preciso força de vontade para permanecer humano, a voz de Hórus me avisou.Quanto mais tempo você passa como ave de rapina, mais pensa como uma.
E só agora você me diz, eu pensei.
Eu poderia ajudar, ele disse. Se eu estivesse no comando.
Hoje não, cabeça de pássaro.
Finalmente, conduzi Sadie até o aeroporto e começamos a procurar um lugar onde pudéssemos voltar à forma humana. Aterrissamos em uma garagem.
Pensei em minha forma humana. Nada aconteceu.
O pânico começou a formar um nó em minha garganta. Fechei os olhos e pensei no rosto de meu pai. Pensei em quanto sentia falta dele, em quanto precisava encontrá-lo. Quando abri os olhos, estava novamente em meu corpo. Infelizmente, Sadie ainda era um papagaio. Ela se debatia, caminhando à minha volta. E grasnava, desesperada.
— Arrá, arrá, arrá!
Havia uma expressão enlouquecida em seus olhos, e dessa vez entendi o medo que minha irmã sentia. Já tinha sido muito difícil para ela deixar a forma de ave na primeira vez. Se a segunda vez exigia mais energia, ela podia estar seriamente encrencada.
— Tudo bem. — Eu me abaixei, tomando o cuidado de fazer movimentos lentos. — Sadie, não se aflija. Você precisa relaxar.
— Arrá!
Ela recolheu as asas. Seu peito arfava.
— Escute, o que me ajudou foi pensar no papai. Lembre-se do que é importante para você. Feche os olhos e pense em sua vida.
Ela fechou os olhos, mas, quase no mesmo instante, gritou frustrada e bateu as asas.
— Pare! — ordenei. — Não voe!
Ela inclinou a cabeça e fez um ruído baixo que parecia uma súplica. Comecei a falar com ela como falaria com um animal assustado. Eu não estava prestando muita atenção às palavras. Só queria manter meu tom calmo.
Depois de um minuto percebi que estava contando minhas viagens com meu pai, as lembranças que tinham me ajudado a sair da forma de pássaro. Contei a ela sobre a ocasião em que papai e eu ficamos presos no aeroporto de Veneza, quando comi tanto canelone que passei mal. Falei sobre o tempo em que passei no Egito, quando encontrei um escorpião em minha meia e papai conseguiu matá-lo com o controle remoto da televisão. Falei sobre como me perdi de papai uma vez, no metrô de Londres, e de como senti medo até ele finalmente me encontrar. Contei histórias bastante constrangedoras que nunca tinha contado a ninguém, porque, bem, com quem poderia compartilhá-las?
E tive a impressão de que Sadie me ouvia. Pelo menos ela parou de bater as asas. Sua respiração ficou mais tranquila. Ela ficou quieta e seus olhos não pareciam mais tão assustados.
— Tudo bem, Sadie — eu disse por fim. — Tenho uma ideia. Vou dizer o que faremos.
Tirei a caixa de magia da bolsa carteiro de meu pai. Coloquei a bolsa sobre meu antebraço e prendi com as alças da melhor maneira possível.
— Suba.
Sadie saltou e se empoleirou em meu pulso. Mesmo com a proteção improvisada, as garras dela perfuravam minha pele.
— Vamos tirar você dessa — prometi. — Continue tentando. Relaxe, e concentre-se na sua vida humana. Você vai conseguir, Sadie. Eu sei que vai. Até lá, eu a carrego.
— Arrá.
— Vamos, precisamos encontrar Bastet.
Com minha irmã empoleirada no braço, caminhei para o elevador. Havia um homem de terno com uma mala de rodinhas esperando em frente à porta. Os olhos dele se estreitaram quando me viu. Minha aparência devia ser bem estranha: um garoto alto e de pele escura usando roupas egípcias sujas e rasgadas, com uma caixa esquisita embaixo de um braço e um papagaio empoleirado no outro.
— Como vai? — falei.
— Vou pela escada. — Ele se afastou apressado.
O elevador me levou ao piso térreo. Sadie e eu atravessamos a área de embarque. Olhei em volta com evidente desespero, esperando ver Bastet em algum lugar, mas, em vez disso, chamei a atenção de um policial. O homem franziu o cenho e começou a caminhar em minha direção.
— Fique calma — pedi a Sadie.
Resistindo ao impulso de correr, eu me virei e caminhei para a porta giratória.
Esse é o problema. Eu sempre fico meio nervoso perto de policiais. Quando eu tinha sete ou oito anos e ainda era um menino bonitinho, isso nem era um problema, mas, a partir dos onze começaram a me olhar daquele jeito, como se dissessem: O que aquele garoto está fazendo aqui? Ele vai roubar alguma coisa? Sei que é ridículo, mas é verdade. Não estou dizendo que acontece com todos os policiais, mas quando não acontece... Bem, digamos que é uma surpresa agradável.
Mas não foi o caso. Eu sabia que o policial ia me seguir, e sabia que devia parecer calmo e caminhar como se tivesse um propósito... o que não é fácil quando se tem um papagaio empoleirado no braço.
Era final de ano, época de Natal, e o aeroporto estava cheio. O movimento era basicamente de famílias na fila dos guichês de compra de passagem, crianças brigando e pais despachando bagagem. Imaginei como seria uma viagem normal em família, sem problemas mágicos ou monstros querendo devorá-lo.
Pare com isso, disse a mim mesmo. Você tem trabalho a fazer.
Mas eu não sabia para onde ir. Bastet já havia passado pela segurança? Ou estava lá fora? A multidão ia se movendo enquanto eu percorria o terminal. As pessoas olhavam para Sadie. Eu sabia que não podia perambular por ali como se estivesse perdido. Era só uma questão de tempo até os policiais...
— Mocinho.
Eu me virei. Era o policial. Sadie grasnou e o homem recuou, apoiando a mão no cassetete.
— Não pode ficar aqui com animais de estimação — avisou ele.
— Tenho passagens... — Tentei levar a mão ao bolso, mas lembrei que as passagens tinham ficado com Bastet.
O policial estava carrancudo.
— É melhor vir comigo.
De repente, uma voz feminina gritou:
— Aí está você, Carter.
Bastet corria em nossa direção, passando pelas filas e desviando dos obstáculos. Nunca tinha me sentido tão feliz por ver uma deusa egípcia.
Ela tinha conseguido roupas novas. Usava um macacão cor-de-rosa, muitas joias douradas e um casaco de caxemira, e parecia uma rica empresária. Ignorando o policial, ela examinou minha aparência e torceu o nariz.
— Carter, já disse para não usar essas roupas de falcoaria. Francamente, parece que dormiu na rua!
Ela pegou um lenço e começou a limpar meu rosto, enquanto o policial nos observava.
— Senhora — disse o homem depois de alguns instantes. — Esse menino é seu...
— É meu sobrinho — mentiu Bastet. — Peço desculpas, oficial. Estamos a caminho de Memphis para uma competição de falcoaria. Espero que ele não tenha causado problemas. Vamos perder o avião!
— Ah, o falcão não pode voar...
Bastet riu.
— É claro que pode, oficial! É uma ave!
Ele ficou vermelho.
— Quero dizer que ele não pode viajar no avião.
— Ah, sim. Temos a documentação.
Para minha surpresa, ela entregou ao policial um envelope e nossas passagens.
— Entendo. — Ele examinou a papelada. — Comprou uma passagem de primeira classe... para seu falcão?
— Na verdade, é um papagaio negro — corrigiu-o Bastet. — Mas, sim, a ave é muito temperamental. É premiada, sabe? Nós sempre voamos de primeira classe, não é, Carter?
— Sim... tia Kitty.
Bastet me lançou um olhar ameaçador, como se não aprovasse o apelido que encontrei para ela. Para quem não sabe, Kitty quer dizer gatinha em inglês. Bastet olhou novamente para o policial e sorriu. Ele devolveu nossas passagens e a “documentação”.
— Bem, se nos der licença, oficial. A propósito, seu uniforme é muito elegante. Faz exercícios físicos?
Antes que ele pudesse responder, Bastet segurou meu braço e me puxou para o portão de embarque.
— Não olhe para trás — ela me disse em voz baixa.
Assim que contornamos o balcão, ela me puxou para a área das máquinas de venda de guloseimas.
— O animal Set está próximo — informou. — Não temos mais do que alguns minutos. Qual é o problema com Sadie?
— Ela não consegue... — comecei. — Não sei exatamente.
— Bem, vamos ter de pensar nisso no avião.
— Como trocou de roupa? E a documentação da ave...
Ela moveu a mão num gesto de desdém.
— A mente mortal é muito fraca. O “documento” é um envelope vazio de passagens. E eu não mudei de roupa. Não realmente. É só um toque de magia.
Olhei para ela com mais atenção e constatei que era verdade. Suas novas roupas tremulavam como uma miragem por cima da malha de pele de leopardo. Assim que ela contou, a magia se tornou evidente, óbvia.
— Vamos tentar passar pelo portão antes que o animal Set nos encontre — explicou ela. — Vai ser mais fácil se guardar suas coisas no Duat.
— O quê?
— Não quer andar por aí com essa caixa embaixo do braço, quer? Use o Duat como armário.
— Como?
Bastet revirou os olhos.
— Francamente, o que ensinam aos magos hoje em dia?
— Tivemos cerca de vinte segundos de treinamento!
— Imagine um espaço no ar, como uma prateleira ou uma arca...
— Um armário de vestiário? Nunca tive um armário desses, de escola.
— Tudo bem. Dê a ele uma fechadura com combinação. Qualquer uma. Imagine-se abrindo o armário com essa combinação. Depois, guarde a caixa lá dentro. Quando precisar dela, basta chamá-la com a mente e ela vai aparecer.
Eu duvidava, mas imaginei o armário. Dei a ele uma combinação: 13/32/33 – números dos Lakers, naturalmente: Chamberlain, Johnson, Abdul-Jabbar. Segurei a caixa de magia de meu pai e a coloquei no armário imaginário, certo de que teria de fechar a porta. Em vez disso, a caixa desapareceu.
— Legal — comentei. — Tem certeza de que posso tê-la de volta?
— Não — Bastet respondeu. — Agora vamos!

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