segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Carter

Capítulo 6 - Uma banheira de pássaro quase me mata

AMÓS VIROU A CARAPAÇA DE ESCARAVELHO em seus dedos.
― Uma cobra de três cabeças, você disse.
Me senti culpado por ele. Ele tinha passado por tanta coisa desde o Natal. Então ele finalmente se curou e veio para casa, e boom, um monstro invade sua sala de práticas. Mas eu não sabia com quem falar. Era um tipo de situação em que Sadie deveria estar por perto.
[Tudo bem, Sadie, não me fite. Eu não estava arrependido.]
― É ― eu disse ― com asas e lança-chamas. Já viu algo como aquela coisa antes?
Amós colocou a concha de escaravelho na mesa. Ele cutucou-a, como se esperasse que viesse à vida. Tínhamos a biblioteca só para nós, o que era incomum. Às vezes, a câmara grande e redonda ficava cheia de recrutas procurando por rolos pelas fileiras de cubículos, ou enviando shabti de busca pelo mundo para artefatos, livros ou pizza.
Pintada no piso estava uma figura de Geb, o deus da terra, seu corpo pontilhado de árvores e rios. Acima de nós, a deusa do céu de pele estrelada, Nut, se estendia por todo o teto. Eu geralmente me sentia seguro naquela sala, protegido por dois deuses que foram amigáveis conosco. Mas agora eu olhava para os shabti de busca postados ao redor da biblioteca e me perguntava se eles se dissolveriam em escaravelhos ou decidiriam nos atacar.
Finalmente Amós disse uma palavra de comando:
― A’max.
Queime. Um pequeno hieróglifo vermelho brilhou sobre o escaravelho. A casca explodiu em chamas e se desfez em um pequeno monte de cinzas.
― Eu me lembro de uma pintura ― Amós relatou ― na tumba de Tutmés III. Mostrava uma cobra de três cabeças e asas como essa que você descreveu. Mas o que isso significa... ― Ele balançou a cabeça. ― Cobras podem ser boas ou ruins na lenda egípcia. Podem ser inimigas de Rá, ou suas protetoras.
― Aquela não era uma protetora ― eu disse. ― Ela queria o pergaminho.
― E ainda tinha três cabeças, que deve simbolizar os três aspectos de Rá. E nasceu dos cascalhos da estátua de Rá.
― Não era de Rá ― eu insisti. ― Por que Rá queria que parássemos de procurá-lo? Além disso, eu reconheci a voz da cobra. Era a voz do seu...
Mordi minha língua.
― Quer dizer, era a voz do criado de Set da Pirâmide Vermelha, o único que foi possuído por Apófis.
Os olhos de Amós ficaram confusos.
― Rosto do Terror ― ele lembrou. ― Você acha que Apófis estava falando com você pela serpente?
Eu assenti.
― Acho que ele colocou aquelas armadilhas no Brooklyn Museum. Ele falou comigo através do bau. Se ele é tão poderoso, pode se infiltrar nessa mansão.
― Não, Carter. Mesmo se estiver certo, não era Apófis em pessoa. Se ele quebrou sua prisão, a causa seria ondulações através do Duat muito poderosas, todo mago poderia senti-las. Mas possuir as mentes dos seus servos, até mesmo enviá-los a lugares protegidos para entregar uma mensagem é muito mais fácil. Eu não acho que a cobra poderia ter feito muito dano a você. Teria ficado muito fraca depois de romper nossas defesas. Ela foi enviada principalmente para te avisar e te assustar.
― Funcionou ― eu disse.
Não perguntei a Amós como ele sabia tanto sobre possessões e os caminhos do Caos. Ter seu corpo assumido por Set, o deus do mau, tinha dado a ele um curso intensivo de coisas assim. Agora ele pareceu voltar ao normal, mas eu sabia pela minha própria experiência de compartilhar uma mente com Hórus: uma vez que hospeda um deus – de modo voluntário ou não – você nunca é exatamente o mesmo. Retém as memórias, até alguns traços do poder do deus.
Eu não podia ajudar notando que a cor da magia de Amós ter mudado. Ela costumava ser azul. Agora quando ele convocava hieróglifos, eles brilhavam em vermelho – a cor de Set.
― Vou reforçar o encanto ao redor da casa ― ele prometeu. ― É hora de atualizar nossa segurança. Vou me certificar de que Apófis não possa enviar mensageiros novamente.
Eu assenti, mas sua promessa não me fez sentir melhor. Amanhã, se Sadie voltasse a salvo, nós ficaríamos fora em uma missão para encontrar os outros dois pergaminhos do Livro de Rá. Claro, nós sobrevivemos na nossa última aventura lutando contra Set, mas Apófis era um inimigo totalmente diferente. E nós não estávamos mais hospedando deuses. Éramos só crianças, enfrentando magos do mal, demônios, monstros, espíritos, e o eterno Lorde do Caos.
Na melhor das hipóteses, eu tinha uma irmã excêntrica, uma espada, um babuíno e um grifo com uma desordem pessoal. Eu não estava gostando dessas chances.
― Amós, e se estivermos errados? E se acordar Rá não funcionar?
Fazia muito tempo desde que eu vi meu tio sorrir. Ele não parecia muito com meu pai, mas quando sorria, ele tinha as mesmas rugas ao redor dos olhos.
― Meu garoto, veja o que você realizou. Você e Sadie têm redescoberto um caminho da magia que não era praticado em milênios. Vocês conseguiram mais de seus recrutas em dois meses do que a maioria dos iniciantes do Primeiro Nomo conseguiu em dois anos. Vocês batalharam com deuses. Conseguiram mais que qualquer mago vivo conseguiu, até eu, ou Michael Desjardins. Acredite em seus instintos. Se eu fosse um homem de apostas, meu dinheiro estaria em você e sua irmã todas as vezes.
Um nó se formou em minha garganta. Eu não tinha começado uma conversa de vitalidade como aquela desde que meu pai ainda estava vivo, e acho que não tinha percebido do quanto precisava de uma. Infelizmente, ouvir o nome de Desjardins me lembrou que tínhamos outros problemas além de Apófis. Assim que começássemos nossa missão, um mago russo, vendedor de sorvete, chamado Vlad, o Inalador tentaria nos assassinar. E se Vlad era o terceiro mago mais poderoso do mundo...
― Quem é o segundo? ― eu perguntei.
Amós franziu o cenho.
― Do que você está falando?
― Você disse que esse cara russo, Vlad Menshikov, é o terceiro mago mais poderoso vivo. Desjardins é o mais poderoso. Quem é o segundo? Eu quero saber se temos outros inimigos para ficar de olho.
A ideia pareceu divertir Amós.
― Não se preocupe com isso. E apesar de suas relações passadas com Desjardins, eu não diria que ele é verdadeiramente um inimigo.
― Diga isso a ele ― murmurei.
― Eu disse, Carter. Nos falamos algumas vezes enquanto eu estava no Primeiro Nomo. Acho que o que você e Sadie conseguiram na Pirâmide Vermelha abalou-o profundamente. Ele sabe que não teria derrotado Set sem vocês. Ele ainda se opõe a vocês, mas se tivéssemos mais tempo, eu poderia ser capaz de convencê-lo...
Aquilo soou tão provável quanto Apófis e Rá virarem amigos no Facebook, mas eu decidi não dizer nada. Amós passou sua mão sobre a mesa e disse um encantamento. Uma holografia de Rá, vermelha, apareceu – uma réplica em miniatura da estátua da sala de práticas.
O deus do sol se parecia com Hórus: um homem com cabeça de falcão. Mas não como Hórus, Rá usava um disco solar como uma coroa e segurava um cajado de pastor e um mangual de guerra – os dois símbolos do faraó. Ele estava vestido com trajes em vez de armadura, sentado calmamente e majestosamente em seu trono, como se estivesse feliz de assistir os outros lutando. A imagem do deus parecia estranha em vermelho, brilhando com a cor do Caos.
― Outra coisa que você deve considerar ― Amós advertiu. ― Eu não digo isso para te desencorajar, mas você perguntou por que Rá queria que parassem de acordá-lo. O Livro de Rá foi dividido por uma razão. Foi feito, intencionalmente, para ser difícil encontrar, então só o merecedor conseguiria. Você pode esperar desafios e obstáculos em sua missão. Os outros dois rolos vão ser no mínimo tão protegidos quanto o primeiro. E você pode perguntar para si mesmo: O que acontece se você acordar um deus que não quer ser acordado?
As portas da biblioteca foram abertas, e eu quase pulei da minha cadeira. Cleo e outras três garotas entraram, conversando e rindo com seus braços cheios de rolos.
― Aqui está minha classe de pesquisa ― Amós agitou a mão, e a holografia de Rá desapareceu. ― Nós falaremos novamente, Carter, talvez depois do almoço.
Eu assenti, mas mesmo assim tinha uma suspeita de que nunca terminaríamos nossa conversa. Quando olhei para trás, para a porta da biblioteca, Amós estava cumprimentando seus estudantes e casualmente limpando as cinzas da carapaça de escaravelho da mesa.
Eu fui para o meu quarto e encontrei Khufu caído na cama, surfando pelos canais de esportes. Ele estava vestindo sua camiseta favorita dos Lakers e tinha uma vasilha de Cheetos sobre seu estômago. Desde que os nossos recrutas se mudaram, o Grande Salão ficou muito barulhento para Khufu ver TV em paz, então ele decidiu virar meu companheiro de quarto. Acho que isso foi uma honra, mas dividir espaço com um babuíno não era fácil. Você acha que cães e gatos soltam pelos? Tente tirar pelo de macaco de suas roupas.
― O que foi? ― perguntei.
― Agh!
Isso é basicamente o que ele sempre diz.
― Ótimo ― eu disse a ele. ― Vou estar na varanda.
Ainda estava frio e chovendo lá fora. O vento do rio East faria os pinguins de Felix se arrepiarem, mas eu não liguei. Pela primeira vez no dia, finalmente podia ficar sozinho.
Desde que nossos recrutas vieram para a Mansão do Brooklyn, eu me senti como se estivesse no centro do palco. Eu tinha que agir confiante mesmo quando tinha dúvidas. Não podia perder minha calma com ninguém (bem, tirando Sadie de vez em quando), e quando as coisas davam errado, não podia reclamar muito alto.
As crianças vieram de longe para treinar com a gente. Muitas delas tinham lutado com monstros e magos no caminho. Eu não podia admitir que não tinha ideia do que estava fazendo, ou me perguntar se essa coisa de caminho-de-deus iria matar a todos nós. Eu não podia dizer, Agora que vocês estão aqui, talvez isso não seja uma boa ideia. Mas teve muitos momentos que foi assim que me senti.
Com Khufu ocupando meu quarto, a varanda era o único lugar que eu podia ficar deprimido na solidão.
Olhei do rio para Manhattan. Era uma ótima vista. Quando Sadie e eu tínhamos chegado à Mansão do Brooklyn, Amós tinha nos dito que magos tentavam ficar longe de Manhattan. Disse que Manhattan tinha outros problemas, seja lá o que significava. E às vezes, quando eu olhava através da água, eu podia jurar que estava vendo coisas. Sadie riu sobre isso, mas uma vez eu vi cavalos voadores. Provavelmente eram só as barreiras mágicas da mansão causando ilusões de ótica, mas ainda assim, era estranho.
Eu me virei para a única mobília da varanda: minha tigela de cristalomancia. Parecia uma banheira de pássaros – só um pires de bronze em um pedestal de pedra – mas era meu item mágico favorito.
Walt fez para mim assim que chegou. Um dia, eu mencionei que seria bom saber o que estava acontecendo em outros lugares, então ele me fez essa tigela. Eu via iniciantes usá-las no Primeiro Nomo, mas eles sempre pareciam ter dificuldade para dominá-la. Felizmente, Walt era um expert em encantamentos.
Se minha tigela de cristalomancia fosse um carro, seria um Cadillac, com direção hidráulica, transmissão automática e assentos mais quentes. Tudo que eu tinha que fazer era limpá-lo com óleo de oliva e falar uma palavra de comando. A tigela me mostraria tudo, contanto que eu pudesse visualizá-lo mentalmente e não estivesse protegido por magia. Pessoas ou lugares que vi pessoalmente ou que significou muito para mim, esses geralmente eram fáceis.
Eu procurei por Zia centenas de vezes sem sorte. Tudo o que eu sabia era que seu antigo professor, Iskandar, tinha colocado ela em um sono mágico e a escondido em algum lugar, substituindo-a por um shabti para deixá-la a salvo; mas eu não tinha ideia de onde a Zia verdadeira estava dormindo.
Tentei algo novo. Eu passei minha mão sobre o pires e imaginei o Lugar de Areias Vermelhas. Nada aconteceu. Eu nunca estivera lá, não tinha ideia de como parecia além de possivelmente ser vermelho e arenoso. O óleo só mostrou meu próprio reflexo.
Certo, então eu não podia ver Zia. Eu fiz a melhor coisa depois. Me concentrei em sua sala secreta no Primeiro Nomo. Eu estive lá só uma vez, mas lembrava cada detalhe. Foi o primeiro lugar onde eu me senti próximo de Zia.
A superfície do óleo ondulou e virou um vídeo mágico. Nada tinha mudado na sala. Velas mágicas ainda queimavam na mesa pequena. As paredes estavam cobertas de fotografias de Zia – fotos da vila, de sua família no Nilo, sua mãe e seu pai, Zia como uma criança pequena.
Zia havia me contado a história de como seu pai tinha desenterrado uma relíquia egípcia e acidentalmente soltou um monstro na vila. Magos vieram derrotar o monstro, mas não antes da cidade inteira ser destruída. Só Zia, escondida por seus pais, tinha sobrevivido. Iskandar, o antigo Sacerdote-Leitor Chefe, levou-a para o Primeiro Nomo e a treinou. Ele era como um pai para ela.
Então, no último Natal, os deuses foram soltos no British Museum. Um deles – Néftis – havia escolhido Zia como hospedeira. Já que um “deus menor” era punido por morte no Primeiro Nomo, quer você hospede o espírito do deus ou não, Iskandar escondeu Zia longe. Ele provavelmente a traria de volta depois de resolver as coisas, mas havia morrido antes de isso acontecer.
A Zia que eu havia conhecido era uma réplica, mas eu nunca tinha acreditado que oshabti e a Zia verdadeira compartilhavam pensamentos. Onde quer que a verdadeira Zia estivesse, ela se lembraria de mim quando acordasse. Ela saberia que nós compartilhávamos uma conexão – talvez o começo de uma grande relação. Eu não podia aceitar que eu havia me apaixonado por nada mais que um pedaço de cerâmica. E definitivamente não podia aceitar que Zia estava além do meu poder de resgate.
Me concentrei na imagem no óleo. Ampliei uma fotografia de Zia nos ombros de seu pai. Ela era jovem na foto, mas você podia dizer que ela seria bonita quando crescesse. Seu cabelo preto brilhante estava cortado curto, como quando eu a conheci. Seus olhos eram âmbar brilhantes. O fotógrafo a pegou no meio da risada, tentando cobrir os olhos de seu pai com suas mãos. Seu sorriso irradiava uma travessura brincalhona.
Eu vou destruir a garota que você procura, a cobra de três cabeças disse, assim como destruí sua vila.
Eu tinha certeza de que ele falava da vila de Zia. Mas o que um ataque de seis anos atrás tinha a ver com a ascensão de Apófis agora? Se não foi só um acidente qualquer, se Apófis quis destruir a casa de Zia, então por quê?
Eu tinha que encontrar Zia. Não era mais pessoal. Ela estava conectada de algum jeito com a batalha que estava vindo com Apófis. E se o aviso da cobra fosse verdade, se eu tivesse que escolher entre encontrar o Livro de Rá ou salvar Zia? Bem, eu já tinha perdido minha mãe, meu pai, e minha antiga vida pelo objetivo de parar Apófis. Eu não iria perder Zia também.
Estava pensando o quão forte Sadie me chutaria se ela me ouvisse dizendo isso, quando alguém bateu na porta da varanda de vidro.
― Ei.
Walt estava no vão da porta, segurando a mão de Khufu.
― Hã, espero que você não ligue. Khufu me deixou entrar.
― Agh! ― Khufu confirmou.
Ele levou Walt para fora, então pulou da grade, desconsiderando a queda de cem pés no rio abaixo.
― Sem problemas ― respondi.
Não que eu tivesse escolha. Khufu adorava Walt, provavelmente porque jogava basquete melhor que eu. Walt apontou para a tigela de cristalomancia.
― Como isso está trabalhando pra você?
A imagem do quarto de Zia ainda tremeluzia no óleo. Eu acenei minha mão sobre a tigela e mudei para outra coisa. Desde que estive pensando sobre Sadie, eu escolhi a sala do vovô e dá vovó.
― Trabalhando bem.
Me virei para Walt.
― Como você se sente?
Por alguma razão, todo o seu corpo ficou tenso. Ele olhou para mim como se eu estivesse tentando encurralá-lo.
― Do que você está falando?
― O acidente na sala de treinamento. A cobra de três cabeças. Do que você acha que eu estou falando?
Os tendões de seu pescoço relaxaram.
― Certo... desculpe, só uma manhã estranha. Amós deu uma explicação?
Me perguntei o que eu disse para chateá-lo, mas decidi deixar isso passar. Eu o enchi com minha conversa com Amós. Walt era geralmente calmo com as coisas. Era um bom ouvinte. Mas ele ainda parecia cauteloso, nervoso. Quando eu terminei de falar, ele passou por cima da grade onde Khufu estava empoleirado.
― Apófis soltou aquela coisa na casa? Se não tivéssemos parado aquilo...
― Amós acha que a serpente não tinha muito poder. Estava aqui só para entregar uma mensagem e nos assustar.
Walt balançou a cabeça em desespero.
― Bem... agora conhece nossas habilidades, eu acho. Sabe que Felix arremessa um sapato bem.
Eu não podia ajudar, mas sorri.
― Sim. Só que não era essa habilidade que eu estava pensando. Aquela luz cinza com que você explodiu a cobra... e o jeito como manipulou o shabti de prática e o transformou em pó...
― Como eu fiz isso? ― Walt deu de ombros impotente. ― Sinceramente, Carter, eu não sei. Estive pensando sobre isso desde então, e... foi só instinto. Primeiro eu pensei que talvez o shabti tivesse algum tipo de feitiço de autodestruição colocado nele, e eu sem querer eu acionei. Às vezes eu posso fazer isso com itens mágicos, fazer com que eu os ative ou os desligue.
― Mas isso não explicaria como você fez isso de novo com a serpente.
― Não ― ele concordou.
Ele parecia até mais distraído pelo incidente do que eu. Khufu começou a arrumar o cabelo de Walt, procurando por piolhos, e Walt nem mesmo tentou pará-lo.
― Walt... ― hesitei, não querendo pressioná-lo. ― Essa nova habilidade, transformar as coisas em pó, não teria nada a ver com... você sabe, o que você estava dizendo para Jaz?
Lá estava ele de novo: o olhar de um animal enjaulado.
― Eu sei ― falei rapidamente ― não é da minha conta. Mas ultimamente tenho agido perturbado. Se tiver alguma coisa que eu possa fazer...
Ele olhou para baixo para o rio. Ele parecia muito deprimido, Khufu grunhiu e bateu em seu ombro.
― Às vezes me pergunto por que vim pra cá ― Walt disse.
― Você está brincando? ― perguntei. ― Você é ótimo em magia. Um dos melhores! Você tem um futuro aqui.
Ele puxou alguma coisa de sua bolsa – um dos escaravelhos mortos da sala de práticas.
― Obrigado. Mas o timing... é como uma piada de mau gosto. As coisas são complicadas pra mim, Carter. E o futuro... eu não sei.
Senti que ele estava falando sobre mais do que o nosso prazo de quatro dias para salvar o mundo.
― Olha, se tiver um problema... ― comecei. ― Se é alguma coisa sobre o jeito que Sadie e eu ensinamos...
― Claro que não. Você tem sido ótimo. E Sadie...
― Ela gosta muito de você ― falei. ― Eu sei que ela pode ser um pouco insistente. Se você quiser que ela se afaste...?
[Certo, Sadie. Talvez eu não devesse dizer aquilo. Mas você não é exatamente sutil quando gosta de alguém. Isso pode estar fazendo o cara ficar desconfortável.]
Walt na verdade riu.
― Não, não é nada com Sadie. Eu gosto dela, também. Eu só...
― Agh!
Khufu grunhiu tão alto que me fez pular. Ele arreganhou os dentes. Me virei e percebi que ele estava rosnando para a tigela de cristalomancia. A cena ainda estava na sala do vovô e da vovó. Mas enquanto eu investigava mais de perto, percebi que algo estava errado. As luzes da TV estavam desligadas. O sofá estava tombado. Senti um gosto metálico na boca. Me concentrei em deslocar a imagem até poder ver a porta da frente. Tinha sido esmagada em pedaços.
― O que há de errado? ― Walt se aproximou de mim. ― O que é isso?
― Sadie... ― foquei toda a minha força de vontade em encontrá-la.
Eu sabia bem que podia localizá-la instantaneamente, mas dessa vez o óleo ficou preto. Uma dor aguda me apunhalou por trás dos olhos, e a superfície do óleo pegou fogo.
Walt me puxou para trás antes de meu rosto ser queimado. Khufu gritou em alarme e derrubou a tigela de bronze sobre a grade, arremessando-a em direção ao rio East.
― O que aconteceu? ― Walt perguntou. ― Eu nunca vi uma tigela fazer...
― Portal para Londres.
Eu tossi, minhas narinas ardendo com o óleo de oliva queimado.
― O mais próximo. Agora!
Walt pareceu entender. Sua expressão endureceu com determinação.
― Nosso portal ainda está em resfriamento. Vamos precisar voltar ao Museu do Brooklyn.
― O grifo ― falei.
― Sim. Estou indo também.
Me virei para Khufu.
― Diga a Amós que estamos saindo. Sadie está encrencada. Sem tempo para explicações.
Khufu grunhiu e pulou direto para o lado da balaustrada, pegando o elevador expresso para baixo. Walt e eu disparamos do meu quarto, correndo nas escadas para o telhado.

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