domingo, 18 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 23 - A prova final do Professor Tot

SADIE FALANDO. DESCULPEM A DEMORA, mesmo achando que vocês não a teriam notado numa gravação. Meu irmão de dedos moles derrubou o microfone em um buraco cheio de... Ah, deixe para lá. De volta à história.
Carter acordou sobressaltado e bateu o joelho na bandeja de bebidas. E foi muito engraçado.
— Dormiu bem? — perguntei.
Ele piscou, olhando para mim com ar confuso.
— Você está humana.
— Que gentil de sua parte notar.
Mordi mais um pedaço de minha pizza. Eu nunca tinha comido pizza em prato de porcelana, nem tinha bebido Coca em um copo (com gelo, óbvio, os americanos são muito estranhos), mas estava gostando da primeira classe.
— Voltei há uma hora. — Pigarreei, limpando a garganta. — Foi... ah, útil, o que você disse sobre focar no que é importante.
Foi estranho eu ter dito só isso, porque eu lembrava tudo o que ele tinha me falado enquanto eu era um papagaio, tudo o que contara sobre as viagens com papai – que tinha se perdido no metrô, ficado doente em Veneza, gritado como um bebê ao encontrar um escorpião em sua meia. Tanta munição para torturá-lo! Mas, estranhamente, eu não me sentia tentada. O jeito como ele tinha exposto sua alma... Talvez pensasse que eu não poderia entendê-lo em minha forma de papagaio. Mas ele tinha sido tão honesto, tão franco, e tinha feito de tudo para me acalmar. Se ele não tivesse me dado algo em que focar, eu provavelmente ainda estaria caçando ratos em Washington.
Carter falara sobre nosso pai como se as viagens que eles fizeram juntos fossem ótimas, sim, mas também uma tremenda provação, com ele sempre se esforçando para agradar e se comportar da melhor maneira possível, sem ninguém com quem relaxar ou conversar.
Eu tinha de admitir que papai era uma presença imponente. Era difícil não querer sua aprovação. (Sem dúvida foi daí que herdei minha personalidade tão carismática.) Eu o via duas vezes por ano e, mesmo assim, tinha de me preparar mentalmente para a experiência.
Pela primeira vez, comecei a pensar se Carter tinha mesmo ficado com a melhor parte da divisão. Eu trocaria minha vida pela dele?
Também decidi não lhe contar o que finalmente me devolvera à forma humana. Não havia sido o foco em nosso pai. Eu tinha imaginado nossa mãe viva, um passeio com ela pela rua Oxford, nós duas olhando vitrines, rindo e conversando – atividades corriqueiras que não tivemos a chance de compartilhar. Um desejo impossível, eu sei. Mas poderoso o bastante para fazer eu me lembrar de quem era.
Não contei nada disso, mas Carter estudava meu rosto, e senti que ele tinha captado meus pensamentos.
Bebi um gole de Coca.
— Perdeu o almoço — comentei.
— Você não tentou me acordar?
Do outro lado do corredor, Bastet arrotou. Ela tinha acabado de esvaziar seu prato de salmão e parecia bem satisfeita.
— Posso conjurar mais Friskies — ofereceu Bastet. — Ou queijos-quentes.
— Não, obrigado — resmungou Carter.
Ele parecia devastado.
— Deus, Carter, se isso é tão importante para você, ainda tem pizza em meu prato...
— Não é isso — respondeu ele, e contou como seu ba quase fora capturado por Set.
O relato prejudicou minha capacidade respiratória. Eu me sentia como se estivesse outra vez aprisionada na forma de papagaio, incapaz de pensar com clareza. Meu pai preso em uma pirâmide vermelha? O coitado do Amós usado como uma peça em um jogo?
Olhei para Bastet, esperando que ela me tranquilizasse de alguma maneira.
— Há algo que possamos fazer?
A expressão dela era tensa.
— Sadie, não sei. Set será mais poderoso no dia de seu aniversário, e o nascer do sol é o momento mais auspicioso para a magia. Se nesse dia, quando o sol nascer, ele conseguir gerar uma grande explosão de energia com a tempestade, usando não só sua magia, mas intensificando-a com o poder de outros deuses que conseguiu escravizar... O caos que poderá desencadear é quase inimaginável.
Estremeci.
— Carter, você disse que um demônio deu a ele essa ideia? — perguntou Bastet.
— Foi o que vi. Ou ele adaptou o plano original, não sei.
— Isso não é do feitio de Set. — Ela sacudiu a cabeça.
Tossi.
— Como não? Isso é exatamente a cara dele.
— Não — insistiu Bastet. — É horrendo demais, até para ele. Set quer ser rei, mas uma explosão dessa magnitude poderá deixá-lo sem nada para governar. É quase como... — Ela parou, aparentemente abalada com o próprio pensamento. — Não entendo isso tudo, mas logo estaremos aterrissando. Você vai ter que perguntar a Tot.
— Está falando como se não fosse conosco — observei.
— Tot e eu não nos damos muito bem. Suas chances de sobrevivência podem ser maiores se...
A luz do cinto de segurança se acendeu. O piloto anunciou que começaríamos o procedimento de pouso em Memphis. Olhei pela janela e vi um vasto rio marrom cortando a paisagem, um rio maior do que todos os que eu já tinha visto. Parecia uma desagradável cobra gigante.
A comissária de bordo se aproximou e apontou meu prato.
— Terminou, meu bem?
— Parece que sim — respondi, desanimada.

***

Memphis não havia recebido o comunicado de que já era inverno. As árvores estavam verdes, o céu era claro e azul.
Insistimos para que desta vez Bastet não pegasse um carro “emprestado”, e ela acabou concordando. Alugamos um conversível. Não perguntei de onde ela tirava dinheiro, mas logo estávamos percorrendo as ruas mais desertas de Memphis a bordo do nosso BMW. A capota estava abaixada.
Só me lembro de cenas isoladas da cidade.
Passamos por uma região que poderia ter servido de cenário para E o vento levou, com grandes mansões brancas, gramados muito verdes e ciprestes altíssimos, embora o Papai Noel de plástico na maioria dos telhados atrapalhasse um pouco. No quarteirão seguinte, quase fomos mortos por uma velha dirigindo um Cadillac, saindo do estacionamento de uma igreja. Bastet buzinou e desviou, e a mulher sorria e acenava. Hospitalidade sulista, suponho.
Depois de mais alguns quarteirões, as casas deram lugar a casebres precários. Vi dois meninos afro-americanos vestindo jeans e camiseta, sentados em uma varanda, tocando violão e cantando. Eles pareciam tão bons que tive vontade de parar para ouvir.
Mais um quarteirão e vimos na esquina um restaurante e um prédio de concreto, um lugar identificado por uma placa manuscrita: FRANGO & WAFFLES. Havia uma fila de vinte pessoas do lado de fora.
— Vocês, americanos, têm um gosto estranho. Que planeta é este? — perguntei.
Carter balançou a cabeça.
— E onde está Tot?
Bastet farejou o ar e virou à esquerda, em uma rua chamada Poplar.
— Estamos chegando perto. Se conheço Tot, ele vai encontrar um centro de aprendizado. Uma biblioteca, talvez, ou uma sala de livros na tumba de um mago.
— Não há muitas delas no Tennessee — lembrou Carter.
Então, vi uma placa e sorri.
— A Universidade de Memphis, talvez?
— Muito bem, Sadie! — Bastet ronronou.
Carter me olhou de cara feia. O coitado sente inveja de mim, eu sei.
Minutos depois, caminhávamos pelo campus de uma pequena universidade: prédios de tijolos vermelhos e pátios amplos. Tudo ali era sinistramente quieto, exceto pelo som de uma bola batendo no chão. Assim que ouviu o barulho, Carter se animou.
— Basquete!
— Ah, por favor — reagi. — Precisamos encontrar Tot.
Mas Carter seguiu o som da bola, e nós o seguimos. Ele contornou um prédio e parou de repente.
— Vamos perguntar a eles.
Eu não entendia o que ele estava fazendo. Mas, ao contornar também o prédio, gritei. Na quadra de basquete, cinco jogadores disputavam uma animada partida. Vestiam camisas de times americanos, e todos pareciam dispostos a vencer – roubavam a bola, empurravam e disputavam a liderança.
Ah... os jogadores eram todos babuínos.
— O animal sagrado de Tot — informou Bastet. — Estamos no lugar certo.
Um dos babuínos tinha pelos dourados e brilhantes, muito mais claros que os dos outros, e também um... ah... um traseiro mais colorido. Estava com uma camisa roxa que parecia estranhamente familiar.
— Aquele é o uniforme... dos Lakers? — perguntei, hesitando antes de mencionar a tola obsessão de Carter.
Ele assentiu, e nós dois rimos.
— Khufu! — gritamos.
Sim, mal conhecíamos o babuíno. Tínhamos passado menos de um dia com ele, e aquele tempo na mansão de Amós parecia ter ficado num passado muito distante, mas ainda assim eu tinha a sensação de estar revendo um velho amigo.
Khufu pulou em meus braços e gritou:
— Agh! Agh!
Ele mexeu em meus cabelos, catando piolhos, eu acho [Não se atreva a fazer comentários, Carter!], e jogando no chão, batendo no piso para mostrar o quanto estava feliz.
Bastet riu.
— Ele disse que você tem cheiro de flamingo.
— Você entende os babuínos? — perguntou Carter.
A deusa deu de ombros.
— Também quer saber onde vocês estiveram.
— Onde nós estivemos? — repeti. — Bem, para começar, diga a ele que passei a maior parte do dia como um papagaio, que não é um flamingo e, embora termine em o, não vai fazer parte da dieta dele. Depois...
— Espere. — Bastet se virou para Khufu e disse: — Agh! — Então olhou para mim. — Tudo bem, continue.
Eu pisquei.
— Tudo bem... é... depois, pergunte onde ele esteve.
Ela traduziu tudo isso com um único grunhido.
Khufu bufou e pegou a bola de basquete, o que causou um frenesi entre seus amigos babuínos. Todos gritavam, se coçavam e rosnavam.
— Ele mergulhou no rio e depois nadou de volta — traduziu Bastet — mas, quando chegou, a casa estava destruída e nós havíamos desaparecido. Esperou um dia pelo retorno de Amós. Como ele não voltou, Khufu veio procurar Tot. Afinal, os babuínos são seus protegidos.
— Por quê? — perguntou Carter. — Quer dizer, sem ofensa, mas Tot é o deus do conhecimento, não é?
— Os babuínos são animais muito espertos — explicou Bastet.
— Agh!
Khufu coçou o nariz, depois virou seu traseiro tecnicolor em nossa direção e jogou a bola para os amigos. Eles a disputaram, mostrando as presas uns aos outros e batendo na cabeça.
— Espertos? — perguntei.
— Bem, eles não são gatos, é claro — acrescentou Bastet. — Mas, sim, espertos. Khufu disse que assim que Carter cumprir sua promessa, ele o levará ao professor.
Eu pisquei.
— O prof... Ah, você quer dizer... Certo.
— Que promessa? — perguntou Carter.
Um canto da boca de Bastet tremeu.
— Parece que prometeu mostrar a ele sua habilidade no basquete.
Carter arregalou os olhos, assustado.
— Não temos tempo!
— Ah, tudo bem — garantiu Bastet. — É melhor eu ir agora.
— Mas para onde, Bastet? — perguntei, porque não queria me separar dela outra vez. — Como a encontraremos?
Ela mudou a expressão, revelando talvez certa culpa, como se tivesse acabado de causar um horrível acidente.
— Encontrarei vocês quando saírem, se saírem...
— Como assim, se? — perguntou Carter, mas Bastet tinha se transformado em Muffin e corria para longe dali.
Khufu gritou para Carter com mais insistência. Ele puxava a mão de meu irmão, levando-o para a quadra. Os babuínos se dividiram imediatamente em dois times. Metade tirou a camisa. A outra continuou vestida. Carter, infelizmente, ficou no time sem camisa, e Khufu o ajudou a tirá-la, mostrando seu peito magro. Os times começaram a jogar.
Não sei nada sobre basquete. Mas tenho certeza de que você não deveria tropeçar no pé do adversário, nem receber a bola com a testa, nem driblar (é essa a palavra?) com as duas mãos, como se afagasse um cachorro possivelmente raivoso. Mas era exatamente assim que Carter jogava.
Os babuínos o atropelavam, literalmente. E marcavam cestas e mais cestas enquanto Carter corria de um lado para outro da quadra, levando boladas e tropeçando nos pés dos macacos até ficar tonto, rodopiar e cair. Os babuínos pararam de jogar e olharam para ele, incrédulos. Carter estava jogado no meio da quadra, ofegante e coberto de suor. Os outros babuínos olharam Khufu. Era evidente o que estavam pensando: Quem convidou esse humano? Khufu cobriu os olhos, envergonhado.
— Carter — eu disse, rindo — toda essa conversa sobre os Lakers, sobre basquete, e você não joga nada! Perdeu para os macacos!
Ele gemeu, infeliz.
— Era... Era o esporte favorito do papai.
Eu o encarei. O esporte favorito do papai. Por que eu não tinha pensado nisso?
Carter interpretou minha expressão atordoada como uma crítica.
— Eu... posso enumerar todas as estatísticas da NBA — disse ele meio desesperado. — Rebotes, assistências, arremessos, enfim, todas as porcentagens.
Os outros babuínos voltaram ao jogo, ignorando Carter e Khufu, que fez um ruído de desgosto, uma mistura de grito e grunhido.
Entendi o sentimento, mas me adiantei e estendi a mão para Carter.
— Venha. Não tem importância.
— Se eu tivesse sapatos melhores — insistiu ele. — Ou se eu não estivesse tão cansado...
— Carter — repeti com uma careta. — Não tem importância. E não vou contar nada ao papai quando o salvarmos.
Ele me olhou com gratidão óbvia. (Afinal, sou mesmo maravilhosa.) Em seguida, segurou minha mão e eu o ajudei a se levantar.
— Ah, e vista a camisa, por favor — pedi. — E, Khufu, é hora de nos levar ao professor.
Khufu nos conduziu até um edifício deserto. O ar nos corredores cheirava a vinagre e os laboratórios vazios pareciam mais apropriados a um colégio americano, não ao tipo de lugar onde um deus poderia ser encontrado.
Subimos a escada e encontramos um corredor de salas de professores. Muitas portas estavam fechadas, e uma tinha sido deixada aberta, revelando um espaço que não era maior que um armário para vassouras, cheio de livros, com uma mesa pequena e uma cadeira. Talvez o professor tivesse feito algo errado para ter uma sala tão pequena.
— Agh!
Khufu parou diante de uma porta de mogno polido, muito melhor que as outras. Um nome fora gravado recentemente no vidro: DR. TOT.
Sem bater, Khufu abriu a porta e entrou.
— Depois de você, homem-galinha — disse a Carter.
(E sim, tenho certeza de que ele já estava arrependido de ter me contado sobre esse incidente em particular. Afinal, eu não poderia parar completamente de provocá-lo. Tenho uma reputação a zelar.)
Esperava encontrar outro armário para vassouras, mas a sala era muito grande.
O pé-direito era de uns dez metros, pelo menos, e um lado do cômodo era todo de janelas, por onde se podia ver o horizonte de Memphis. Uma escada de metal levava a um mezanino ocupado por um enorme telescópio, e lá de cima vinha o som de uma guitarra elétrica tocada por alguém sem habilidade alguma. As outras paredes do escritório eram repletas de estantes de livros. Nas mesas havia um pouco de tudo: kitsde química, computadores desmontados ou em processo de montagem, animais empalhados com fios elétricos brotando da cabeça.
O ambiente tinha um cheiro forte de bife, mas com um toque defumado e temperado que eu jamais tinha sentido. Mais estranho que tudo, bem na nossa frente, meia dúzia de aves de pescoço longo – íbis – estavam atrás de mesas, como recepcionistas, digitando no laptop com o bico.
Carter e eu nos entreolhamos. Pela primeira vez não soube o que dizer.
— Agh! — Khufu gritou.
No mezanino, o som da guitarra cessou. Um homem magro, com seus vinte anos, levantou-se segurando o instrumento. Tinha cabelos louros e rebeldes, como Khufu, e vestia um jaleco branco manchado por cima de jeans e camiseta preta. Ao vê-lo, pensei que um fio de sangue escorria do canto de sua boca. Depois percebi que era um molho qualquer para carne.
— Fascinante. — Ele sorriu. — Descobri algo, Khufu. Não estamos em Memphis, Egito.
Khufu me olhou de soslaio, e eu poderia jurar que sua expressão significava .
— Também descobri uma nova forma de magia, chamada música, ou blues — continuou o homem. — E churrasco. Sim, você precisa experimentar churrasco.
Khufu não parecia impressionado. Ele subiu em uma estante de livros, pegou uma caixa de Cheerios e começou a comer.
O guitarrista desceu escorregando pelo corrimão com perfeito equilíbrio e parou a nossa frente.
— Ísis e Hórus — disse ele. — Vejo que encontraram novos corpos.
Seus olhos tinham uma dúzia de cores e mudavam como um caleidoscópio, com um efeito hipnótico.
— Hum... não somos... — consegui gaguejar.
— Ah, entendo — disse ele. — Tentando compartilhar o corpo, não é? Não pense que consegue me enganar, Ísis. Nem por um minuto. Sei que você está no comando.
— Mas ela não está! — protestei. — Meu nome é Sadie Kane. Presumo que seja Tot.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Quer dizer que não me conhece? É claro que sou Tot. Também chamado Djehuti. Também chamado...
Sufoquei o riso.
— Ja-hooty?
Tot pareceu ofendido.
— Em egípcio antigo, esse é um nome perfeitamente o.k. Os gregos me chamavam de Tot. Mais tarde, eles me confundiram com o deus deles Hermes. Tiveram até a ousadia de mudar o nome de minha cidade sagrada para Hermópolis, embora não fôssemos nada parecidos. Se conhecesse Hermes...
— Agh! — Khufu gritou com a boca cheia de Cheerios.
— Tem razão — concordou Tot. — Estou me desviando do assunto. Então, você diz ser Sadie Kane. E... — Ele apontou o dedo para Carter, que olhava as aves digitadoras. — Suponho que você não seja Hórus.
— Carter Kane — respondeu meu irmão, ainda distraído com os pássaros. — O que éaquilo?
Tot se animou.
— O nome é computador. Maravilhoso, não é? Aparentemente...
— Não, estou perguntando o que as aves estão digitando. — Carter se aproximou para ler uma das telas. — “Breve tratado sobre a evolução dos Yaks”?
— Meus ensaios acadêmicos — explicou Tot. — Tentei desenvolver vários projetos ao mesmo tempo. Sabia, por exemplo, que esta universidade não oferece cursos de astrologia ou de arte da cura? Deprimente! Pretendo mudar essa situação. Estou reformando minhas novas instalações, perto do rio. Logo Memphis será um verdadeiro centro de aprendizado!
— Brilhante! — Comentei com pouca animação. — Precisamos de ajuda para derrotar Set.
As aves pararam de digitar e me olharam. Tot limpou o molho de churrasco da boca.
— Tem coragem de me pedir isso? Depois da última vez?
— Última vez? — repeti.
— Tenho a conta aqui em algum lugar. — Tot bateu nos bolsos do jaleco de laboratório, tirando de um deles um pedaço de papel amarrotado. — Não, lista do supermercado.
Ele amassou o papel e jogou por cima do ombro. Assim que tocou o chão, o papel se transformou em uma baguete, um litro de leite e uma embalagem com seis latinhas de refrigerante.
Tot examinou as mangas. Percebi que as manchas em seu jaleco eram palavras borradas, escritas em todos os idiomas. Moviam-se e mudavam, formando hieróglifos, letras do alfabeto latino, símbolos demóticos. Ele bateu a mão em uma mancha na lapela e sete letras caíram no chão, formando uma palavra: lagosta. A palavra se transformou no crustáceo, parecido com um camarão, porém maior, que moveu as patas por uns instantes antes de um íbis capturá-lo.
— Ah, esqueça — disse Tot finalmente. — Vou contar a versão resumida: para vingar o pai, Osíris, Hórus desafiou Set em um duelo. O vencedor se tornaria o rei dos deuses.
— Hórus venceu — disse Carter.
— Você se lembra!
— Não, eu li sobre isso.
— Lembra também que sem minha ajuda você e Ísis teriam morrido? Tentei mediar a situação e impedir a batalha. Essa era uma das minhas responsabilidades: manter o equilíbrio entre ordem e caos. Mas, nããão, Ísis me convenceu a ficar do lado de vocês, porque Set estava se tornando muito poderoso. E a batalha quase destruiu o mundo.
Ele reclama demais, Ísis disse dentro de minha cabeça. Não foi tão ruim.
— Não? — perguntou Tot, e tive a sensação de que ele podia ouvir a voz tão bem quanto eu. — Set arrancou um olho de Hórus.
— Ai. — Carter piscou.
— Sim, e eu o substituí por um olho novo feito de luar. O Olho de Hórus: seu famoso símbolo. Esse fui eu, muito obrigado. E quando você cortou a cabeça de Ísis...
— Espere aí. — Carter olhou para mim. — Eu cortei a cabeça dela?
Eu fiquei melhor, Ísis me garantiu.
— Só porque eu a curei, Ísis! — disse Tot. — E sim, Carter, Hórus, como preferir ser chamado, você ficou tão maluco que cortou a cabeça dela. Foi incauto, sabe... Queria atacar Set enquanto ainda estava fraco, e Ísis tentou impedi-lo. Isso o deixou tão zangado que você empunhou sua espada... Bem, resumindo, vocês quase destruíram um ao outro antes que eu pudesse derrotar Set. Se começarem outra batalha contra o Lorde Vermelho, cuidado. Ele vai usar o caos para jogá-los um contra o outro.
Nós o derrotaremos novamente, Ísis prometeu. Tot está com ciúmes, só isso.
— Cale a boca — Tot e eu dissemos ao mesmo tempo.
Ele me olhou surpreso.
— Então, Sadie... Você está tentando se manter no controle. Não vai durar muito. Pode ter o sangue dos faraós, mas Ísis é obcecada pelo poder, dissimulada...
— Eu posso contê-la.
E precisei usar toda minha força de vontade para impedir Ísis de recitar uma sequência de insultos.
Tot dedilhou as cordas de sua guitarra.
— Não tenha tanta certeza. Ísis provavelmente já lhe contou que ela ajudou a derrotar Set. Também contou que foi por causa dela que Set perdeu o controle? Ela exilou nosso primeiro rei.
— Rá? — perguntou Carter. — Ele não ficou velho e decidiu deixar a terra?
Tot riu.
— Ele estava velho, sim, mas foi forçado a partir. Ísis se cansou de esperar pela aposentadoria de Rá. Ela queria que o marido, Osíris, se tornasse rei. E também queria mais poder. Então, um dia, enquanto Rá cochilava, Ísis colheu em segredo um pouco da baba do deus sol.
— Eca — reagi. — Desde quando baba deixa alguém poderoso?
Tot me lançou um olhar acusador.
— Você misturou a baba com argila para criar uma cobra venenosa. Naquela noite, a serpente entrou no quarto de Rá e o mordeu no tornozelo. Nenhuma magia, nem mesmo a minha, foi suficiente para salvá-lo. Ele teria morrido...
— Deuses podem morrer? — perguntou Carter.
— Ah, sim — respondeu Tot. — É claro que, na maioria das vezes, nós voltamos do Duat... em algum momento. Mas esse veneno devorava a própria essência de Rá. Ísis, é claro, fez-se de inocente. Chorou diante do sofrimento dele. Tentou ajudá-lo com sua magia. Finalmente, disse ao deus sol que só havia uma maneira de salvá-lo: Rá deveria dizer a ela seu nome secreto.
— Nome secreto? — estranhei. — Como Bruce Wayne?
— Tudo na Criação tem um nome secreto — explicou Tot. — Até os deuses. Conhecer o nome secreto de um ser significa ter poder sobre essa criatura. Ísis garantiu que, com o nome secreto de Rá, ela poderia curá-lo. Ele sentia muita dor, por isso concordou. E Ísis o curou.
— Mas adquiriu poder sobre ele — supôs Carter.
— Extremo poder — confirmou Tot. — Ela obrigou Rá a se retirar para o céu, abrindo caminho para seu amado, Osíris, tornar-se o novo rei dos deuses. Set fora um importante ajudante de Rá, e não suportava ver o irmão Osíris tornando-se rei. Isso fez de Set e Osíris inimigos, e aqui estamos, cinco milênios mais tarde, ainda lutando aquela mesma guerra, tudo por causa de Ísis.
— Mas isso não é culpa minha! — falei. — Eu jamais faria uma coisa dessa.
— Não? — perguntou Tot. — Não seria capaz de qualquer coisa para salvar sua família, mesmo que isso perturbasse o equilíbrio do cosmos?
Os olhos de caleidoscópio capturaram os meus, e senti um forte impulso de rebeldia. Ora, e por que não deveria ajudar minha família? Quem era aquele doido de jaleco para me dizer o que eu podia ou não podia fazer?
De repente, percebi que não sabia quem estava pensando essas coisas: Ísis ou eu? O pânico começou a se formar em meu peito. Se não conseguia distinguir meus pensamentos dos de Ísis, em quanto tempo eu estaria completamente maluca?
— Não, Tot — retruquei. — Precisa acreditar em mim. Estou no controle, eu, Sadie, e preciso de sua ajuda. Set capturou nosso pai.
Falei tudo de uma vez, desde o British Museum até a visão de Carter com a pirâmide vermelha. Tot ouviu sem comentar, mas eu podia jurar que novas manchas surgiam em seu jaleco enquanto eu falava, como se algumas de minhas palavras fossem adicionadas à mistura.
— Só quero que dê uma olhada em uma coisa para nós — concluí. — Carter, mostre a ele o livro.
Carter revirou sua bolsa e pegou o livro que tínhamos roubado em Paris.
— Você escreveu isto, certo? — Meu irmão perguntou. — Aqui diz como derrotar Set.
Tot desdobrou o papiro.
— Ah, não. Odeio ler o que escrevo. Esta frase, por exemplo. Hoje eu jamais a construiria desse jeito. — Ele tateou os bolsos do jaleco. — Caneta vermelha... alguém tem uma?
Ísis desafiava meu controle, insistindo que Tot precisava de um pouco de bom-senso.Uma bola de fogo, ela suplicou. Só uma bola de fogo enorme e mágica, por favor?
Não posso dizer que não me senti tentada, mas eu a mantive sob controle.
— Escute, Tot — chamei — Ja-hooty, o que for. Set se prepara para destruir a América do Norte, no mínimo, possivelmente o mundo. Milhões de pessoas vão morrer. Você disse que se preocupa com o equilíbrio. Vai nos ajudar ou não?
Por um momento, tudo o que ouvíamos era o ruído dos íbis bicando as teclas dos laptops.
— Vocês estão encrencados — concordou Tot. — Então, digam-me, por que acham que seu pai os meteu nessa encrenca? Por que ele libertou os deuses?
Eu quase disse: Para trazer de volta nossa mãe. Mas não acreditava mais nisso.
— Minha mãe viu o futuro — deduzi. — Algo ruim estava para acontecer. Acho que ela e papai tentavam impedir isso. E decidiram que a única saída seria libertar os deuses.
— Embora usar o poder dos deuses seja extremamente perigoso para os mortais — pressionou Tot — e contra a lei da Casa da Vida: uma lei que eu convenci Iskandar a criar, aliás.
Lembrei-me de alguma coisa que o Sacerdote-leitor Chefe dissera quando estávamos no Salão das Eras. “Os deuses têm grande poder, mas só os humanos têm criatividade.” Acho que minha mãe convenceu Iskandar de que a lei era errada. Talvez ele não pudesse admitir publicamente, mas ela o fez mudar de ideia. O que estava por acontecer era tão ruim que deuses e mortais precisariam uns dos outros.
— E o que está a caminho? — perguntou Tot. — A ascensão de Set?
O tom dele era contido, como o de um professor propondo uma pergunta capciosa.
— Talvez — respondi, cuidadosa — mas não sei.
No alto da estante, Khufu guinchou e mostrou os dentes, numa careta estranha.
— Tem razão, Khufu — resmungou Tot. — Ela não soa como Ísis. Ísis jamais confessaria que não sabe alguma coisa.
Tive de usar uma espécie de mão mental para tapar a boca de Ísis.
Tot jogou o livro de volta para Carter.
— Vamos ver se você age tão bem quanto fala. Vou mostrar o livro de encantamentos, desde que me provem que realmente têm controle sobre seus deuses, que não estão apenas repetindo antigos padrões.
— Uma prova? — deduziu Carter. — Nós aceitamos.
— Ei, espere aí — protestei.
Talvez por ter estudado em casa, por nunca ter frequentado uma escola, Carter não saiba que “prova” normalmente é uma coisa ruim.
— Maravilhoso — respondeu Tot. — Há um item de poder na tumba de um mago. Tragam-no para mim.
— Na tumba de que mago? — repeti.
Mas Tot pegou um pedaço de giz do bolso do jaleco e escreveu no ar. Uma porta se abriu diante dele.
— Como fez isso? — perguntei. — Bastet disse que não podemos conjurar portais nos Dias do Demônio.
— Os mortais não — concordou Tot. — Mas um bom mago pode. Se passarem na prova, teremos churrasco.
O portal nos sugou para um buraco negro e o escritório de Tot desapareceu.

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