quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Sadie

Capítulo 13 - Um amigável esconde-esconde (com pontos bônus para morte dolorosa!)

Eu vejo. Terminando com o demônio homicida. Tentando fazer a minha parte da história parecer chata, hein? Carter, você gosta de chamar tanta atenção.
Bem, enquanto vocês iam de cruzeiro pelo Nilo em um barco luxuoso, Walt e eu estávamos viajando em um estilo um pouco menos espalhafatoso.
Do reino dos mortos, eu me aventurei a outra conversa com Ísis para negociar uma porta de entrada para o Delta do Nilo. Ísis devia ter ficado zangada comigo (eu não posso imaginar o porquê), pois ela depositou Walt e eu até a cintura em um pântano, nossos pés completamente presos na lama.
— Obrigada! — gritei para o céu.
Tentei me mover, mas não consegui. Nuvens de mosquitos se recolheram em torno de nós. O rio estava vivo, borbulhando e espirrando ruídos, o que me fez pensar em um peixe tigre dentuço e nos elementais da água que Carter havia descrito para mim.
— Alguma ideia? — perguntei para Walt.
Agora que ele estava de volta ao mundo mortal, ele parecia perder sua vitalidade. Ele parecia... Acho que a palavra seria oco. Suas roupas se encaixavam de maneira mais folgada. Os brancos de seus olhos estavam tingidos de um amarelo doentio. Os ombros curvados, como se os amuletos em volta do pescoço pesassem. Vê-lo assim me deu vontade de chorar, o que não é algo que faço com facilidade.
— Sim — disse ele, vasculhando sua bolsa. — Eu tenho a coisa certa.
Ele pegou um shabti – a estatueta de cera branca de um crocodilo.
— Oh, você não fez — eu disse. — Seu garoto travesso maravilhoso.
Walt sorriu. Por um momento ele quase parecia o antigo Walt.
— Todo mundo estava abandonando a Casa do Brooklyn. Achei que não seria certo deixá-lo para trás.
Ele jogou a estatueta no rio e falou uma palavra de comando. Filipe da Macedônia irrompeu da água.
Ser surpreendido por um crocodilo gigante no Nilo é algo que você geralmente deseja evitar, mas Filipe era uma visão bem-vinda. Ele sorriu para mim com seus enormes croco-dentes, olhos de uma cor rosa brilhante e a pele branca escamosa flutuando logo acima da superfície.
Walt e eu o agarramos. Em menos de um minuto, Filipe tinha nos puxado livres da lama. Logo nos empoleiramos em suas costas, fazendo o nosso caminho rio acima. Eu estava na frente, agarrando os ombros de Filipe. Walt sentou atrás na seção do meio de Filipe. Filipe era um crocodilo comprido, o que deixou um espaço considerável entre Walt e eu – possivelmente mais do que eu teria preferido. No entanto, tivemos um lindo passeio, exceto por estarmos encharcados, endurecidos de lama e cercados de mosquitos.
A paisagem era um labirinto de canais, ilhas gramadas, juncais e bancos de areia lamacentos. Era impossível dizer onde o rio acabava e a terra começava. Ocasionalmente, na distância, víamos campos arados ou os telhados de pequenas aldeias, mas na maior parte do tempo tivemos o rio só para nós.
Vimos vários crocodilos, mas todos eles nos evitaram. Eles seriam muito loucos em incomodar Filipe.
Como Carter e Zia, demoramos a deixar o Mundo Inferior. Eu estava assustada com o quanto o sol já tinha subido no céu. O calor se transformava no ar como uma névoa pastosa. Minha camisa e calças estavam encharcadas. Eu gostaria de ter trazido uma muda de roupas, porém não teria feito muita diferença, já que minha mochila estava úmida também. Além disso, com Walt por perto, não havia lugar para me trocar.
Depois de um tempo, fiquei entediada em observar o Delta. Virei e me sentei de pernas cruzadas, de frente para Walt.
— Se tivéssemos um pouco de madeira, poderíamos começar uma fogueira nas costas de Filipe.
Walt riu.
— Eu não acho que ele gostaria disso. Além disso, não tenho certeza se queremos enviar sinais de fumaça.
— Você acha que estamos sendo vigiados?
Sua expressão ficou séria.
— Se eu fosse Apófis, ou mesmo Sarah Jacobi...
Ele não precisava terminar esse pensamento. Um número grande de vilões nos queriam mortos. Claro que estariam nos vigiando. Walt vasculhou sua coleção de colares. Eu não observei as curvas suaves de sua boca, ou como sua camisa agarrou-se ao seu peito no ar úmido. Não – só negócios, essa sou eu.
Ele escolheu um amuleto em forma de íbis – o animal sagrado de Tot. Walt sussurrou para ele e atirou-o no ar. O amuleto expandiu-se em um belo pássaro branco com um bico longo e curvo com preto nas pontas das asas. Ele circulou acima de nós, esbofeteando meu rosto com o vento, em seguida, voou devagar e graciosamente sobre as zonas úmidas. Ele me lembrou de uma cegonha daqueles antigos desenhos animados em que as aves traziam bebês em trouxas. Por alguma razão ridícula, este pensamento me fez corar.
— Você irá enviá-lo para explorar a frente? — adivinhei.
Walt assentiu.
— Ele vai procurar as ruínas de Saïs. Esperançosamente estarão por perto.
A menos que Ísis tenha nos mandado para o lado errado do Delta, pensei. Isis não respondeu, o que era prova suficiente de que ela estava irritada. Nós deslizamos rio acima à bordo da Cruzeiros Crocodilo. Normalmente eu não teria me sentido desconfortável com a quantidade de tempo com Walt, mas não havia muito a dizer, e nenhuma boa maneira de dizê-lo. Amanhã de manhã, de uma forma ou de outra, a nossa longa luta contra Apófis estaria terminada.
Claro que eu estava preocupada com todos nós. Eu tinha deixado Carter com o fantasma sociopata do tio Vinnie. Não tive coragem para lhe dizer que Zia tornava-se, ocasionalmente, uma arremessadora de bolas de fogo maníaca. Eu me preocupava com Amós e sua luta com Set. Me preocupava com nossos iniciados jovens, praticamente sozinhos no Primeiro Nomo e não duvido, aterrorizados. Senti o coração partido por meu pai, que estava sentado em seu trono no Mundo Inferior de luto por nossa mãe mais uma vez e é claro que eu temia pelo espírito de minha mãe, à beira da destruição em algum lugar no Duat.
Mais do que tudo, eu estava preocupada com Walt. O resto de nós tinha alguma chance de sobreviver, porém pequena. Mesmo se vencêssemos, Walt estaria condenado. De acordo com Setne, Walt talvez não fosse nem mesmo sobreviver a nossa viagem para Saïs.
Eu não precisava de ninguém para me dizer isso. Tudo o que eu tinha que fazer era baixar minha visão para o Duat. A aura cinza doentia girava em torno de Walt, ficando cada vez mais fraca. Quanto tempo, eu me perguntava, antes que ele se transformasse na visão mumificada que eu tinha visto em Dallas?
Então, novamente, houve a outra visão que eu tinha visto no Salão do Julgamento. Depois de falar com o guardião chacal, Walt se voltou para mim, e só por um momento, eu achava que ele era...
— Anúbis queria estar lá — Walt interrompeu meus pensamentos. — Quero dizer, no Salão do Julgamento, ele queria estar lá por você, se isso é o que você estava pensando.
Fiz uma careta.
— Eu estava pensando sobre você, Walt Stone. Você está correndo contra o tempo e nós não tivemos uma conversa boa sobre isso.
Mesmo dizer isso era difícil.
Walt arrastou os pés na água. Ele colocou seus sapatos para secar na cauda de Filipe. Os pés dos garotos não são algo que eu acho atraente, especialmente quando acabaram de ser tirados de meias sujas. No entanto, os pés de Walt eram bastante agradáveis. Seus dedos tinham quase a mesma cor do lodo girando no Nilo.
[Carter está se queixando de meus comentários sobre os pés de Walt. Bem, perdoem-me. Era mais fácil se concentrar em seus dedos do pé do que no olhar triste de seu rosto!]
— Hoje, o mais tardar — disse ele. — Mas, Sadie, está tudo bem.
A raiva cresceu dentro de mim, me pegando de surpresa.
— Pare com isso! — rebati. — Não está nem um pouco perto de tudo bem! Oh, sim, você me disse que é grato por ter me conhecido, e por ter aprendido magia na Casa do Brooklin e ajudado na luta contra Apófis. Tudo muito nobre. Mas não está... — a minha voz se quebrou. — Não está tudo bem.
Bati meu punho nas costas escamosas de Filipe, o que não era justo com o crocodilo. Gritar com Walt não era justo também. Mas eu estava cansada de tragédias. Não fui projetada para toda essa perda, sacrifício e tristeza horríveis. Eu queria jogar meus braços em torno de Walt, mas havia um muro entre nós, o conhecimento que ele estava condenado. Meus sentimentos por ele eram tão misturados, eu não sabia se eu era impulsionada pela simples atração, ou culpa ou (se assim posso dizer) amor ou determinação obstinada para não perder alguém com quem eu me importava.
— Sadie... — Walt olhou através dos pântanos.
Ele parecia bastante desamparado, e suponho que eu não podia culpá-lo. Eu estava sendo um pouco impossível.
— Se eu morrer por algo que acredito... tudo bem para mim. Mas a morte não tem que ser o fim. Estive conversando com Anúbis, e...
— Deuses do Egito, isso de novo não! Por favor, não fale sobre ele. Eu sei exatamente o que ele está lhe dizendo.
Walt pareceu surpreso.
— Você sabe? E... você não gosta da ideia?
— Claro que não! — gritei.
Walt parecia absolutamente cabisbaixo.
— Oh, saia dessa! — disse. — Eu sei que Anúbis é o guia dos mortos. Ele está preparando-o para a vida futura. Ele lhe disse que vai estar tudo bem. Você vai morrer de uma morte nobre, obter um julgamento rápido, e ir em linha reta para o Paraíso do Antigo Egito. Maravilhosamente sanguinário! Você vai ser um fantasma como a minha pobre mãe. Talvez não seja o fim do mundo para você. Se isso te faz sentir melhor sobre o seu destino, então tudo bem. Mas eu não quero ouvir sobre isso. Não preciso de outra... outra pessoa que eu não posso estar junto.
Meu rosto estava queimando. Já era ruim o suficiente que minha mãe fosse um espírito. Eu nunca poderia abraçá-la direito novamente, ir às compras com ela, obter aconselhamento sobre coisas de garotas. Era ruim o suficiente que eu tinha sido cortada de Anúbis, o horrivelmente frustrante deus lindo que tinha enrolado o meu coração em nós. No fundo, sempre soube que um relacionamento com ele era impossível dada a nossa diferença de idade – cinco mil anos ou algo assim – mas os outros deuses terem-no decretado fora dos limites apenas esfregava sal na ferida.
Agora pensar em Walt como um espírito, também fora do alcance era simplesmente demais. Eu olhei para ele, com medo de que meu comportamento malcriado o fizesse se sentir ainda pior.
Para minha surpresa, ele abriu um sorriso. Então ele riu.
— O quê?
Ele dobrou-se, ainda rindo, o que eu achei bastante imprudente.
— Você acha isso engraçado? — gritei. — Walt Stone!
— Não... — Ele abraçou seus lados. — Não, é só... você não entende. Não é bem assim.
— Bem, então como é que é?
Ele conseguiu manter o controle sobre si. Ele parecia estar juntando seus pensamentos quando sua íbis branca mergulhou do céu. Ela pousou na cabeça de Filipe, bateu suas asas e grasnou.
O sorriso de Walt derreteu.
— Chegamos. As ruínas de Saïs.

***

Filipe nos levou à praia. Nós colocamos os sapatos e atravessamos o terreno pantanoso. À nossa frente estendia-se uma floresta de palmeiras, nebulosa na luz da tarde. Garças voaram. Abelhas pretas e laranjas pairavam sobre as plantas de papiro.
Uma abelha pousou no braço de Walt. Várias outras circularam sua cabeça.
Walt parecia mais perplexo do que preocupado.
— A deusa que deve viver por aqui, Neith... ela não tem algo a ver com abelhas?
— Não faço ideia — admiti.
Por alguma razão, eu senti o desejo de falar calmamente.
[Sim, Carter. Foi a primeira vez para mim. Obrigado por perguntar.]
Olhei através da floresta de palmeiras. Ao longe, pensei ter visto uma clareira com alguns grupos de tijolos de barro que furavam acima da grama como dentes podres.
Eu os mostrei para Walt.
— Os restos de um templo?
Walt deve ter sentido o mesmo instinto de cautela que eu tive. Ele agachou na grama, tentando diminuir o seu perfil. Então olhou de volta nervosamente para Filipe da Macedônia.
— Talvez a gente não devesse ter um crocodilo de três mil quilos pisando na floresta com a gente.
— Concordo.
Ele sussurrou uma palavra de comando. Filipe encolheu-se em uma estatueta de cera pequena. Walt guardou nosso crocodilo, e começamos a ir furtivamente em direção às ruínas.
Quanto mais perto chegávamos, mais abelhas enchiam o ar. Quando chegamos à clareira, encontramos uma colônia inteira, como um tapete vivendo ao longo de um conjunto de ruínas de paredes de tijolos de barro.
Ao lado delas, sentada em um bloco de pedra, uma mulher inclinava-se sobre um arco, desenhando na sujeira com uma flecha.
Ela era linda de certo jeito – forma fina e pálida, com maçãs do rosto altas, olhos encovados e sobrancelhas arqueadas, como uma supermodelo andando na linha entre glamorosa e desnutrida. Seu cabelo era preto brilhante, trançado em ambos os lados com pedras com pontas de seta. Sua expressão altiva parecia dizer: Eu sou muito legal para até olhar para você.
Não havia nada de glamoroso em suas roupas, no entanto. Ela estava vestida para caçar no deserto, de cor uniforme – bege, marrom e ocre. Várias facas estavam penduradas no cinto. Uma aljava estava amarrada às suas costas, e seu arco parecia uma arma muito séria polida em madeira entalhada com hieróglifos do poder.
O mais preocupante de tudo, ela parecia estar esperando por nós.
— Vocês são barulhentos — ela reclamou. — Eu poderia ter lhes matado uma dúzia de vezes.
Olhei para Walt, depois de volta para a caçadora.
— Hm... obrigada? Por não nos matar, eu quero dizer.
A mulher bufou.
— Não me agradeça. Você terá que fazer melhor do que isso se quiser sobreviver.
Eu não gostei do som disso, mas de um modo geral, não perguntava à mulheres fortemente armadas sobre tais declarações.
Walt apontou para o símbolo que a caçadora estava desenhando na sujeira – quatro pontos ovais.
— Você é Neith — Walt adivinhou. — Esse é o seu símbolo, o escudo com setas cruzadas.
A deusa ergueu as sobrancelhas.
— Pensou muito? É claro que sou Neith. E, sim, esse é o meu símbolo.
— Parece um besouro — eu disse.
— Não é um besouro! — Neith rosnou.
Atrás dela, as abelhas tornaram-se agitadas, rastejando sobre os tijolos de barro.
— Você está certa — decidi. — Não é um besouro.
Walt estalou o dedo como se tivesse acabado de ter um pensamento.
— As abelhas... eu me lembro agora. Esse era o nome de seu templo... A Casa da Abelha.
— As abelhas são caçadoras incansáveis — Neith explicou. — Guerreiras destemidas. Eu sou como as abelhas.
— Uh, quem não é? — ofereci. — Pequenas, charmosas... barulhentas. Mas veja, estamos aqui em uma missão.
Comecei a explicar sobre Bes e sua sombra. Neith me cortou com um aceno de sua seta.
— Eu sei por que você está aqui. Os outros me disseram.
Eu umedeci meus lábios.
— Os outros?
— Magos da Rússia — disse ela. — Eles eram presas terríveis. Depois deles, alguns demônios apareceram. Eles não eram muito melhores. Todos eles queriam matá-los.
Eu andei um passo mais perto de Walt.
— Entendo. E assim você...
— Os destruí, é claro — Neith disse.
Walt fez um som que estava entre um grunhido e um choramingar.
— Os destruiu por que... eram maus? — perguntou esperançoso. — Você sabia que os demônios e os magos estavam trabalhando para Apófis, certo? É uma conspiração.
— Claro que é uma conspiração — Neith disse. — Estão todos dentro dela... os mortais, magos, demônios, coletores de impostos. Mas eu sei qual é a deles. Qualquer pessoa que invade meu território paga. — Ela me deu um sorriso rígido. — Eu pego troféus.
De sob a gola de sua jaqueta militar, ela procurou um colar. Eu estremeci, esperando ver alguns pedaços sangrentos de... Bem, eu nem sequer quero dizer. Em vez disso, o cordão estava amarrado com esfarrapados quadrados de tecido – brim, linho, seda.
— Bolsos — confidenciou Neith, com um brilho perverso em seus olhos.
As mãos de Walt foram instintivamente para os lados de suas calças de treino.
— Você, hum... tomou seus bolsos?
— Você me acha cruel? — Neith perguntou. — Oh, sim, eu recolhi os bolsos dos meus inimigos.
— Assustador — eu disse — não sabia que os demônios tinham bolsos.
— Oh, sim. — Neith olhou em qualquer direção, aparentemente para ter certeza de que ninguém estava escutando. — Você apenas tem que saber onde olhar.
— Certo... — falei — Enfim, nós viemos para encontrar a sombra de Bes.
— Sim.
— E eu entendo que você é uma amiga de Bes e de Taueret.
— Isso é verdade. Eu gosto deles. Eles são feios. Não acho que eles são da conspiração.
— Oh, definitivamente não! Então você poderia, talvez, nos mostrar onde a sombra de Bes está?
— Eu poderia. Ela habita em meu reino... nas sombras dos tempos antigos.
— Mas... o que agora?
Eu me arrependi tanto de perguntar.
Neith pegou sua flecha e atirou em direção ao céu. Quando navegou para cima, o ar ondulou. Uma propagação de ondas de choque se espalhou em toda a paisagem, e eu me senti momentaneamente tonta.
Quando pisquei, descobri que o céu da tarde tinha virado um azul mais brilhante, listrado com as nuvens de laranja. O ar estava fresco e limpo. Bandos de gansos voavam acima. As palmeiras estavam mais altas, a grama estava mais verde.
[Sim, Carter, eu sei que parece bobagem. Mas a grama era realmente mais verde do outro lado.]
Onde havia ruínas de tijolos de barro, agora estava um templo altivo. Walt, Neith e eu estávamos fora das muralhas, que subia dez metros e brilhava branca sob o sol. Todo o complexo deveria ter pelo menos um quilômetro quadrado. Meio caminho para baixo na parede à esquerda, uma porta brilhava com filigranas de ouro. Uma estrada forrada com esfinges de pedra levava para o rio, onde veleiros estavam ancorados.
Desorientador? Sim. Mas eu tive uma experiência semelhante uma vez antes, quando tinha tocado nas cortinas de luz no Salão das Eras.
— Estamos no passado? — imaginei.
— Uma sombra dele — Neith disse. — A memória. Este é o meu refúgio. Pode ser o seu cemitério, a menos que sobrevivam da caça.
Eu fiquei tensa.
— Você quer dizer... você irá nos caçar? Mas não somos seus inimigos! Bes é seu amigo. Você deveria estar nos ajudando!
— Sadie está certa — disse Walt. — Apófis é seu inimigo. Ele vai tentar destruir o mundo amanhã de manhã.
Neith bufou.
— O fim do mundo? Eu vi isso vindo por eras. Vocês simples mortais tem ignorado os sinais de alerta, mas eu estou preparada. Eu tenho um abrigo subterrâneo estocado com alimentos, água limpa, armas e munições suficientes para segurar um exército zumbi.
Walt ergueu as sobrancelhas.
— Um exército zumbi?
— Você nunca sabe! — Neith rebateu. — O ponto é, eu vou sobreviver ao apocalipse. Eu posso viver fora da terra! — Ela apontou um dedo para mim. — Você sabia que a palmeira tem seis diferentes partes comestíveis?
— Hm...
— E eu nunca vou ficar entediada — Neith continuou — já que eu também sou a deusa da tecelagem. Eu tenho cordas o suficiente para um milênio de macramê!
Eu não tinha nenhuma resposta, já que eu não tinha certeza do que era macramê.
Walt levantou as mãos.
— Neith, isso é ótimo, mas Apófis está se erguendo amanhã. Ele vai engolir o sol, mergulhar o mundo em trevas, e deixar toda a terra desmoronar de volta para o mar de Caos.
— Estarei a salvo no meu abrigo — Neith insistiu. — Se você puder provar para mim que é amigo e não inimigo, talvez eu vá te ajudar com Bes. Depois, vocês podem se juntar a mim no abrigo. Eu vou lhes ensinar habilidades de sobrevivência. Vamos comer rações e tecer roupas novas com os bolsos dos nossos inimigos!
Walt e eu trocamos olhares. A deusa era maluca. Infelizmente, precisávamos de sua ajuda.
— Então você quer nos caçar. E supostamente temos que sobreviver...
— Até o pôr do sol — disse ela. — Evite-me neste tempo, e você pode viver no meu abrigo.
— Eu tenho uma contraproposta — falei rapidamente. — Sem abrigo. Se nós ganharmos, você nos ajuda a encontrar a sombra de Bes, mas também vai lutar ao nosso lado contra Apófis. Se você é realmente uma deusa da guerra e uma caçadora e tudo isso, deve desfrutar de uma boa batalha.
Neith sorriu.
— Feito! Eu vou mesmo dar-lhe uma vantagem de cinco minutos para começar. Mas devo avisá-los: Eu nunca perdi. Quando eu os matar, vou ter seus bolsos!
— Você conduz uma barganha difícil — disse. — Mas tudo bem.
Walt me deu uma cotovelada.
— Hum, Sadie...
Eu atirei para ele um olhar de advertência. Tanto quanto eu via, não havia nenhuma maneira de que nós poderíamos escapar desta caça, mas eu tinha uma ideia de como poderíamos nos manter vivos.
— Vamos começar! — Neith chorou. — Você pode ir a qualquer lugar no meu território, que é basicamente o delta inteiro. Não importa. Eu vou encontrá-los.
— Mas... — Walt começou.
— Quatro minutos agora.
Fizemos a única coisa sensata. Nos viramos e corremos.
— O que é macramê? —  gritei enquanto corríamos através dos juncos.
— Uma espécie de tecelagem — disse Walt. — Por que estamos falando disso?
— Não sei — admiti. — Apenas co...
O mundo virou de cabeça para baixo, ou melhor, eu virei. Encontrei-me pendurada em uma rede de fio áspero com meus pés no ar.
— Isso é macramê. — disse Walt.
— Adorável. Tire-me daqui!
Ele puxou uma faca de sua mochila – garoto prático – e conseguiu libertar-me, mas eu contei que tínhamos perdido a maior parte de nossa vantagem. O sol estava mais baixo no horizonte, mas quanto tempo teríamos para sobreviver? Trinta minutos? Uma hora?
Walt vasculhou sua mochila e considerou brevemente o crocodilo branco de cera.
— Filipe, talvez?
— Não. Não podemos lutar com Neith só com as mãos. Temos que evitá-la. Podemos nos dividir...
— Tigre. Barco. Esfinge. Camelos. Invisibilidade... não — Walt murmurou, examinando seus amuletos — Por que eu não tenho um amuleto para invisibilidade?
Estremeci. A última vez que eu tentei invisibilidade, não tinha ido muito bem.
— Walt, ela é uma deusa da caça. Nós provavelmente não poderíamos enganá-la com qualquer tipo de feitiço de ocultação, mesmo se você tivesse um.
— Então o quê?
Eu coloquei meu dedo no peito de Walt e bati no amuleto que ele não estava considerando – um colar que era o irmão gêmeo do meu.
— Os amuletos shen? — ele piscou. — Mas como eles podem ajudar?
— Nós nos dividimos e ganhamos tempo. Podemos compartilhar pensamentos através dos amuletos, certo?
— Bem... sim.
— E eles podem nos teletransportar um ao lado do outro, certo?
Walt franziu a testa.
— Eu... eu os projetei para isso, mas...
— Se nos separamos, Neith terá que escolher um de nós para acompanhar. Ficamos tão distantes quanto possível. Se ela me encontrar primeiro, você me teletransporta para fora de perigo, com o amuleto. Ou vice versa. Em seguida, nos dividimos novamente e continuamos.
— É brilhante — Walt admitiu. — Se os amuletos funcionarem rápido o suficiente. E se pudermos manter a conexão mental. E se Neith não matar um de nós antes que possamos pedir ajuda. E...
Eu coloquei meu dedo em seus lábios.
— Vamos deixar no “isso é brilhante”.
Ele balançou a cabeça, então me deu um beijo apressado.
— Boa sorte.
O garoto bobo não deveria fazer coisas como essa quando eu preciso ficar focada. Ele partiu para o norte e, depois de um momento confuso, corri para o sul.

***

Coturnos não são as melhores para se esgueirar por aí.
Eu considerei passar pelo rio, pensando que talvez a água fosse esconder meu caminho, mas eu não queria ir para um mergulho sem saber o que estava sob a superfície – cobras, crocodilos, espíritos do mal. Carter me disse uma vez que os egípcios mais antigos não sabiam nadar, o que pareceu ridículo para mim na época. Como pessoas vivendo ao lado de um rio poderiam não saber nadar? Agora eu entendi. Ninguém em sua sanidade quer dar um mergulho naquela água.
[Carter diz que um mergulho no Tâmisa ou no rio East seria quase tão ruim para sua saúde quanto. Tudo bem, ele tem um ponto. Agora se cale, querido irmão, e deixe-me voltar para a brilhante parte de Sadie-salva-o-dia.]
Corri ao longo das margens, através dos juncos quebrados, pulando através de um crocodilo tomando sol. Eu não me preocupei em verificar se ele estava me perseguindo. Eu tinha predadores maiores com que me preocupar.
Não sei por quanto tempo corri. Pareciam vários quilômetros. À medida que o rio aumentou, eu desviei para o interior, tentando ficar sob a cobertura das palmeiras. Não ouvi nenhum sinal de perseguição, mas eu tinha uma constante coceira no meio de meus ombros, onde eu esperava uma seta.
Tropecei através de uma clareira onde alguns egípcios antigos em tangas estavam cozinhando sobre uma fogueira ao lado de uma pequena cabana de palha. Talvez os egípcios fossem apenas sombras do passado, mas eles pareciam reais o suficiente. Eles pareciam bastante surpresos ao ver uma menina loira com roupas de combate tropeçar em seu acampamento. Então eles viram meu cajado e varinha, e imediatamente se curvaram, colocando suas cabeças na sujeira e murmurando algo sobre Per Ankh – Casa da Vida.
— Hum, sim. Negócios oficiais de Per Ankh. Sigam em frente. Tchau.
Eu corri. Eu me perguntava se iria aparecer em uma pintura da parede do templo – uma menina loira egípcia com mexas roxas no cabelo correndo lateralmente por entre as palmeiras, gritando “Caramba!” em hieróglifos enquanto Neith me perseguia. O pensamento de alguns pobres arqueólogos tentando decifrar isso quase levantou meu ânimo.
Cheguei à beira da floresta de palmeiras e tropecei, parando. Atrás de mim, campos arados espalhavam-se para longe. Nenhum lugar para correr ou esconder.
Eu me virei.
THUNK!
Uma flecha atingiu a árvore mais próxima com tal força que choveu folhas na minha cabeça.
Walt, pensei desesperadamente, agora, por favor.
A vinte metros de distância, Neith levantou-se da grama. Ela tinha lama do rio borrada no rosto. Havia folhas de palmeiras presas em seu cabelo como orelhas de coelho.
— Eu tenho caçado porcos selvagens com mais habilidade do que você — ela reclamou. — Eu tenho caçado plantas de papiro com mais habilidade!
Agora Walt, pensei. Querido, querido Walt. Agora.
Neith balançou a cabeça em desgosto. Ela colocou uma seta no arco. Eu senti uma sensação de puxão no meu estômago, como se estivesse em um carro e o motorista de repente pisou nos freios.
Me encontrei sentada em uma árvore ao lado de Walt, em um galho menor de um sicômoro grande.
— Funcionou — ele disse.
Maravilhoso Walt!
Beijei-o apropriadamente – ou tão apropriadamente quanto possível dada a nossa situação. Havia um cheiro doce sobre ele que eu não tinha notado antes, como se tivesse comido flores de lótus.
Walt respirou fundo.
— É um agradecimento?
— Você parece melhor — notei.
Seus olhos não estavam tão amarelos. Ele parecia estar se movendo com menos dor. Isto deveria deleitar-me, mas em vez disso, fiquei preocupada.
— Aquele cheiro de lótus... você bebeu alguma coisa?
— Eu estou bem — ele olhou para longe de mim. — É melhor nos dividir e tentar novamente.
Isso não me deixou menos preocupada, mas ele estava certo. Nós não tínhamos tempo para conversar. Saltamos para o chão e partimos em direções opostas.

***

O sol estava quase tocando o horizonte. Comecei a sentir-me esperançosa. Certamente não teríamos de aguentar por muito mais tempo.
Eu quase tropecei em outra rede de macramê, mas felizmente eu estava à procura das artes e projetos de artesanato de Neith. Evitei a armadilha, empurrando através de um suporte de plantas de papiro, e encontrei-me de volta no templo de Neith.
Os portões dourados estavam abertos. A larga avenida de esfinges levava direto para o complexo. Não havia guardas... Sem sacerdotes. Talvez Neith tivesse matado todos eles e recolhidos seus bolsos, ou talvez eles estivessem todos para baixo no abrigo, se preparando para uma invasão zumbi.
Hmm. Eu considerei que o último lugar que Neith poderia me procurar era em sua base. Além disso, Taueret tinha visto a sombra de Bes naquelas muralhas. Se eu pudesse encontrar a sombra sem a ajuda de Neith, melhor.
Corri para as portas, mantendo um olhar desconfiado sobre as esfinges. Nenhuma delas veio à vida. Dentro do massivo pátio havia dois obeliscos autônomos com pontas de ouro. Entre eles uma estátua de Neith em trajes do Antigo Egito encarava zangada. Escudos e flechas estavam empilhados ao redor de seus pés como despojos de guerra.
Olhei para as paredes circundantes. Várias escadas levavam até as muralhas. O sol poente criava várias sombras longas, mas eu não vi quaisquer silhuetas anãs óbvias. Taueret tinha sugerido que eu chamasse a sombra. Eu estava prestes a tentar quando ouvi a voz de Walt em minha mente: Sadie!
É muito difícil se concentrar quando a vida de alguém depende de você.
Eu segurei o amuleto shen e murmurei:
— Vamos lá. Vamos lá.
Imaginei Walt de pé ao meu lado, de preferência sem setas nele. Eu pisquei e lá estava ele. Ele quase me derrubou com um abraço.
— Ela... ela já teria me matado — Walt engasgou. — Mas ela queria falar primeiro. Ela disse que gostou do nosso truque. Ela ia ter orgulho de matar-nos e tomar nossos bolsos.
— Super — eu disse. — Dividir novamente?
Walt olhou por cima do meu ombro.
— Sadie, olhe.
Ele apontou para o canto noroeste das paredes, onde uma torre se projetava das muralhas. Conforme o céu ficou vermelho, sombras lentamente derreteram a partir do lado da torre, mas uma sombra manteve-se – a silhueta de um homem corpulento, com um pouco de cabelo crespo.
Temo que esquecemos do nosso plano. Juntos, corremos para os degraus e escalamos a parede. Em um momento, nós estávamos no parapeito, olhando para a sombra de Bes.
Eu percebi que este deveria ter sido o local exato onde Taueret e Bes haviam dado as mãos, que Taueret havia descrito. Bes tinha dito a verdade – ele deixou sua sombra aqui para que ela pudesse ser feliz, mesmo quando ele não estava.
— Oh, Bes... — Meu coração parecia que estava encolhendo em uma cera shabti. — Walt, como é que vamos capturá-lo?
Uma voz atrás de nós disse:
— Vocês não vão.
Viramos. A poucos metros, Neith estava nas muralhas. Duas setas estavam colocadas em seu arco. Nesse intervalo, eu imaginava que ela não teria nenhuma dificuldade para acertar nós dois ao mesmo tempo.
— Uma boa tentativa — ela admitiu. — Mas eu sempre ganho a caça.

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