segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Carter

Capítulo 22 - Amigos nos lugares mais estranhos

PARECIA QUE MENSHIKOV TINHA NADADO pelo Lago de Fogo sem um escudo mágico. Seus cabelos grisalhos cacheados tinham sido reduzidos a palha negra. Seu terno branco estava em farrapos e cheio de furos queimados. Seu rosto inteiro estava com bolhas, os olhos arruinados não parecerem fora do lugar.
Como Bes devia ter dito, Menshikov estava vestindo suas roupas feias. A memória de Bes me fez ficar com raiva. Tudo que tínhamos passado, tudo que tínhamos perdido, era tudo culpa de Vlad Menshikov.
A Barca do Sol parou na praia de conchas de escaravelho.
Rá berrou Olá-á-á-á-á-á e tropeçou em seus pés. Ele começou a perseguir um servo de esfera azul ao do redor convés como se fosse uma borboleta bonita.
Os demônios derrubaram suas pás e se reuniram na margem. Eles olharam uns aos outros incertos, sem dúvida se perguntando se esse era algum tipo de pegadinha. Com certeza esse velho caduco boboca não podia ser o deus sol.
― Maravilha ― Menshikov disse. ― Vocês trouxeram Rá, afinal de contas.
Isso me deu um momento para perceber o que tinha de diferente em sua voz. A respiração rouca se fora. Seu tom era barítono, profundo e suave.
― Fiquei preocupado ― ele continuou. ― Vocês demoraram tanto tempo na Quarta Casa, achei que estariam presos para passar a noite. Podíamos ter libertado Lorde Apófis sem vocês, é claro, mas teria sido tão inconveniente caçar vocês mais tarde. Isso é muito melhor. Lorde Apófis vai estar faminto quando acordar. Ele vai ficar mais feliz por vocês terem trazido um lanche para ele.
― Wheee, lanche ― Rá riu.
Ele mancava ao redor do barco, tentando esmagar o servo de luz com seu mangual. Os demônios começaram a rir. Menshikov deu a eles um sorriso indulgente.
― Sim, muito engraçado ― ele disse. ― Meu avô divertiu Pedro, o Grande, com um casamento anão. Vou fazer melhor. Vou entreter o próprio Lorde do Caos com o deus sol senil!
A voz de Hórus falou urgente na minha mente: Pegue de volta as armas do faraó. Essa é a sua última chance!
Lá no fundo, eu sabia que era uma péssima ideia. Se eu reclamasse as armas do faraó agora, nunca as devolveria. E os poderes que eu ganharia não seriam suficientes para derrotar Apófis. Ainda assim, fiquei tentado. Eu me sentiria tão bem em pegar o cajado e o mangual daquele Rá velho e estúpido e esmagar Menshikov no chão.
Os olhos do russo brilharam com malícia.
― Uma revanche, Carter Kane? Certamente. Percebi que você não tem seu anão babá dessa vez. Vamos ver o que consegue fazer por si próprio.
Minha visão ficou vermelha, e isso não tinha nada a ver com a luz na caverna. Eu saí do barco e invoquei o avatar do deus falcão. Eu nunca havia tentado o feitiço tão fundo no Duat antes. Consegui mais do que pedi. Em vez de ficar envolto em uma holografia brilhante, me senti mais alto e mais forte. Minha visão aumentou, mais nítida.
Sadie fez um som estrangulado.
― Carter?
― Pássaro grande! ― Rá disse.
Olhei para baixo e descobri que eu era um gigante de carne e osso, quatro metros e meio de altura, vestido na armadura de batalha de Hórus. Levei minhas mãos enormes para a cabeça e afaguei penas em vez de cabelo. Minha boca era um bico afiado. Gritei com alegria, e saiu como um guincho, ecoando pela caverna.
Os demônios se afastaram nervosos.
Olhei para baixo, para Menshikov, que agora parecia tão insignificante quanto um rato. Eu estava pronto para pulverizá-lo, mas Menshikov zombou e apontou seu cajado. Seja lá o que ele estava planejando, Sadie foi mais rápida. Ela atirou seu próprio cajado, que se transformou em um papagaio (da espécie da ave de rapina) tão grande quanto um pterodátilo.
Típico. Eu viro algo bem legal como um guerreiro falcão, e Sadie tem que me acompanhar.
Seu papagaio bofeteava o ar com suas asas pesadas. Menshikov e seus demônios foram dar cambalhotas do outro lado da praia.
― Dois pássaros grandes! ― Rá começou a aplaudir.
― Carter, me dê cobertura! ― Sadie puxou o Livro de Rá. ― Preciso começar o encanto.
Achei que o papagaio gigante estava fazendo um ótimo trabalho em função de guarda, mas dei um passo à frente e fiquei pronto para lutar.
Menshikov ficou de pé.
― Certamente, Sadie Kane, comece seu encanto. Você não entende? O espírito de Khepri criou essa prisão. Rá deu parte de sua própria alma, sua habilidade de renascer, para manter Apófis acorrentado.
Pareceu que ele tinha dado um tapa no rosto de Sadie.
― “O último escaravelho”...
― Exatamente ― Menshikov concordou. ― Todos esses escaravelhos se multiplicaram de um – Khepri, a terceira alma de Rá. Meus demônios vão encontrá-lo, eventualmente, vasculhando pelas conchas. É um dos únicos escaravelhos que ainda estão vivos agora, e uma vez que eu esmagá-lo, Apófis irá se libertar. Mesmo se vocês invocarem Rá de volta, Apófis ainda vai ficar livre! De qualquer maneira, Rá está muito fraco para lutar. Apófis vai devorá-lo, como as profecias antigas previram, e o Caos vai destruir o Maat de uma vez por todas. Vocês não podem vencer.
― Você é louco ― falei, minha voz muito mais profunda que o normal. ― Você vai ser destruído também.
Vi a luz fraturada em seus olhos, e percebi alguma coisa que me chocou no âmago. Menshikov não queria isso mais que nós. Ele tinha vivido com tanta tristeza e desespero que Apófis tinha bagunçado sua alma, feito dele um prisioneiro de seus próprios sentimentos detestáveis. Vladimir Menshikov pretendia se regozijar, mas ele não sentia nenhuma sensação de triunfo. Por dentro, ele estava aterrorizado, derrotado, miserável. Ele estava escravizado por Apófis. Quase senti pena por ele.
― Já estamos mortos, Carter Kane ― ele disse. ― Esse lugar nunca foi feito para humanos. Você não sente? O poder do Caos está infiltrando nossos corpos, murchando nossas almas. Mas eu tenho planos maiores. Um hospedeiro pode viver indefinidamente, não importa que doença pode ter, não importa o quanto possa ser ferido. Apófis já curou minha voz. Em breve vou estar inteiro novamente. Vou viver para sempre!
― Um hospedeiro...
Quando percebi o que ele estava falando, quase perdi o controle da minha nova forma gigante.
― Você não está falando sério. Menshikov, pare isso antes que seja tarde demais.
― E morrer? ― ele perguntou.
Atrás de mim, uma nova voz disse:
― Há coisas piores que morrer, Vladimir.
Virei-me e vi um segundo barco deslizando em direção à margem – um bote cinza pequeno com um simples remo mágico que remava sozinho. O olho de Hórus estava pintado na proa do barco, e seu passageiro solitário era Michel Desjardins. O cabelo e barba do Sacerdote-leitor Chefe estavam agora tão brancos quanto a neve. Hieróglifos brilhantes flutuavam de suas vestes cor de creme, fazendo uma trilha de palavras divinas atrás dele.
Desjardins pisou em terra firme.
― Você é brinquedo de alguma coisa muito pior que a morte, meu velho amigo. Reze para que eu te mate antes que tenha sucesso.
De todas as coisas estranhas que eu tinha experimentado aquela noite, Desjardins se intensificando para lutar do nosso lado era definitivamente a mais estranha. Ele caminhou entre meu guerreiro falcão gigante e o mega-papagaio de Sadie como se não fossem grande coisa, e plantou seu cajado nos escaravelhos mortos.
― Renda-se, Vladimir.
Menshikov riu.
― Você tem olhado para si mesmo recentemente, meu senhor? Minhas maldições estiveram minando suas forças por meses, e você nem mesmo percebeu. Está quase morto agora. Eu sou o mago mais poderoso do mundo.
Era verdade que Desjardins não parecia bem. Seu rosto estava quase tão magro e enrugado quanto o do deus sol. Mas a nuvem de hieróglifos parecia forte ao seu redor. Seus olhos brilhavam com intensidade, assim como meses atrás no Novo México, quando ele tinha batalhado contra nós nas ruas de Las Cruces e jurado nos destruir.
Ele deu um passo a frente, e a ralé de demônios se afastou. Acho que eles reconhecerem a pele de leopardo ao redor de seus ombros como uma marca de poder.
― Eu falhei em muitas coisas ― Desjardins admitiu. ― Mas não vou falhar nisso. Nãovou deixar você destruir a Casa da Vida.
― A Casa? ― A voz de Menshikov ficou aguda. ― Ela morreu séculos atrás! Devia ter sido dissolvida quando o Egito caiu.
Ele chutou as cascas secas de escaravelho.
― A Casa tem tanta vida quanto essas cascas ocas de inseto. Acorde, Michel! O Egito se foi, está sem sentido, a história antiga. É hora de destruir o mundo e começar outra vez. O Caos sempre vence.
― Nem sempre ― Desjardins se virou para Sadie. ― Comece o encanto. Vou cuidar desse desgraçado.
O chão subiu debaixo de nós, tremendo enquanto Apófis tentava ascender.
― Pense primeiro, criança ― Menshikov avisou. ― O mundo vai acabar, não importa o que faça. Os mortais não podem deixar essa caverna vivos, mas dois de vocês foram possuídos por deuses. Combinem com Hórus e Ísis de novo, se comprometam a servir Apófis, e podem sobreviver essa noite. Desjardins sempre foi seu inimigo. Mate-o para mim agora e apresente seu corpo como um presente para Apófis! Vou garantir a ambos posições de honra em um novo mundo comandado pelo Caos, sem restrições de quaisquer regras. Posso te dar o segredo da cura de Walt Stone.
Ele sorriu da expressão aturdida de Sadie.
― Sim, minha garota. Eu sei como. O remédio foi passado por gerações pelos curandeiros de Amon-Rá. Mate Desjardins, una-se com Apófis, e o garoto que você ama será poupado.
Vou ser honesto. Suas palavras eram persuasivas. Eu podia imaginar um novo mundo onde nada era impossível, onde não haveria leis aplicadas, nem mesmo as leis da física, e poderíamos ser o que quiséssemos.
O Caos é impaciente. É aleatório. E acima de tudo, é egoísta. Ele derruba tudo apenas por uma questão de mudança, se alimentando em fome constante. Mas o Caos pode também ser atraente. Ele tenta você a acreditar que nada importa exceto o que vocêquer. E havia tanto que eu queria.
A voz restaurada de Menshikov era suave e confiante, como o tom de Amós quando ele usava magia para persuadir mortais. Aquilo era o problema. A promessa de Menshikov era um truque. Suas palavras não eram mesmo suas. Elas estavam sendo forçadas a sair dele. Seus olhos se mexiam como se estivessem lendo um texto pronto. Ele falava da vontade de Apófis, mas quando ele terminava trancava os olhos em mim, e só brevemente vi seus pensamentos reais – um apelo torturado que ele teria gritado se tivesse controle de sua própria boca: Me mate agora. Por favor.
― Me desculpe, Menshikov ― eu disse, e sinceramente quis dizer aquilo. ― Magos e deuses tem que ficar juntos. O mundo pode precisar de melhorias, mas vale a pena preservar. Não vamos deixar o Caos vencer.
Então várias coisas aconteceram de uma vez. Sadie abriu seu pergaminho e começou a ler. Menshikov gritou Ataquem! E os demônios marcharam à frente. O papagaio gigante estendeu suas asas, desviando uma explosão de fogo verde do cajado de Menshikov que provavelmente teria incinerado Sadie completamente.
Encarreguei-me de protegê-la, enquanto Desjardins invocava um turbilhão de vento ao redor de seu corpo e voava na direção de Vlad Menshikov. Andei no meio dos demônios. Atingi um com uma cabeça de navalha, agarrei seus tornozelos, e o balancei como uma arma, fatiando seus aliados em pilhas de areia. O papagaio gigante de Sadie pegou mais dois em suas garras e os atirou no rio.
Enquanto isso, Desjardins e Menshikov subiam no ar, presos dentro de um tornado. Eles giravam em torno de si, disparando fogo, veneno e ácido. Os demônios que chegavam muito perto derretiam instantaneamente.
No meio disso tudo, Sadie lia o Livro de Rá. Não sabia como ela podia se concentrar, mas suas palavras ressoavam claras e altas. Ela invocou o amanhecer e a ascensão de um novo dia. Névoa dourada começou a se espalhar ao redor de seus pés, tecendo as cascas secas como se estivesse procurando por vida. A praia inteira estremeceu, e bem no subterrâneo, Apófis rugiu em ultraje.
― Oh, não! ― Rá gritou atrás de mim. ― Vegetais!
Virei-me e vi um dos maiores demônios embarcando no barco de sol, lâminas em todas as quatro de suas mãos. Rá deu a ele a amora e correu, se escondendo atrás de seu trono ardente. Atirei o Cabeça de Navalha na multidão de seus amigos, agarrei uma lança de outro demônio, e atirei na direção do barco.
Se tivesse sido eu atirando, minha completa falta de habilidade em tiros de longa distância me faria empalar o deus sol, o que seria muito constrangedor. Felizmente, minha nova forma gigante tinha mira digna de Hórus. A lâmina atingiu o demônio de quatro braços bem no meio das costas. Ele derrubou as facas, cambaleou para a borda do barco e caiu no Rio da Noite.
Rá se debruçou para o lado e deu a ele a última amora.
O tornado de Desjardins ainda girava em torno dele, travado em combate com Menshikov. Eu não podia dizer qual mago tinha vantagem. O papagaio de Sadie estava fazendo seu melhor para protegê-la, empalando demônios com seu bico e esmagando-os com suas garras enormes.
De algum jeito, Sadie manteve sua concentração. A névoa dourada engrossou enquanto se espalhava pela praia. Os demônios restantes começaram a recuar enquanto Sadie falava as últimas palavras do encanto:
― Khepri, o escaravelho que nasce da morte, o renascimento de Rá!
O Livro de Rá sumiu em um clarão. O chão retumbou, e da massa de conchas mortas, um simples escaravelho subiu no ar, um inseto vivo dourado que flutuou na direção de Sadie e começou a descansar em suas mãos. Sadie sorriu triunfante, eu quase ousei esperar que tivéssemos vencido.
Então um riso sibilante encheu a caverna.
Desjardins perdeu o controle de seu redemoinho, e o Sacerdote-leitor Chefe saiu voando na direção do barco, batendo na proa com tanta força que quebrou o parapeito e ficou absolutamente imóvel.
Vladimir Menshikov caiu no chão, aterrissando agachado. Em torno de seus pés, as conchas de escaravelhos mortos se dissolveram, virando areia cor de sangue.
― Brilhante ― ele disse. ― Brilhante, Sadie Kane!
Ele se levantou, e toda a energia mágica na caverna pareceu correr na direção de seu corpo – névoa dourada, luz vermelha, hieróglifos brilhantes – tudo em colapso com Menshikov como se ele tivesse pego a gravidade de um buraco negro. Seus olhos arruinados se curaram. O rosto cheio de bolhas começou a se alisar, jovem e bonito. O terno branco se reparou, então o tecido ficou vermelho escuro. A pele ondulou, e percebi com um calafrio que ele tinha escamas de cobra crescendo.
Na Barca do sol, Rá murmurou:
― Oh, não. Preciso de zebras.
A praia inteira virou areia vermelha. Menshikov estendeu a mão para a minha irmã.
― Me dê o escaravelho, Sadie. Faço uma troca com você. Você e seu irmão vão sobreviver. Walt vai sobreviver.
Sadie agarrou o escaravelho. Fiquei pronto para atacar. Mesmo no meu corpo de guerreiro falcão gigante, podia sentir a energia do Caos ficando mais e mais forte, solapando minha força. Não tínhamos muito tempo, mas tínhamos que parar Apófis. No interior da minha mente, aceitei o fato de que morreria. Estava agindo agora pelo amor de nossos amigos, pela família Kane, por todo o mundo mortal.
― Você quer o escaravelho, Apófis? ― A voz de Sadie era cheia de repugnância. ― Então venha e pegue, seu nojento...
Ela chamou Apófis de algumas palavras tão ruins que vovó teria lavado sua boca com sabão por um ano. [E não, Sadie, não vou dizê-las no microfone.]
Menshikov deu um passo em sua direção. Peguei uma pá que um dos demônios tinha derrubado. O papagaio gigante de Sadie voou para Menshikov, suas garras posicionadas para atacar, mas Menshikov sacudiu suas mãos como se estivesse espantando uma mosca. O monstro se dissolveu em uma nuvem de penas.
― Você me toma por um deus? ― Menshikov rugiu.
Enquanto ele se focava em Sadie, eu o contornei por trás, fazendo o meu melhor para me aproximar sorrateiramente – o que não era fácil quando você é um homem pássaro de quatro metros de altura.
― Eu sou o próprio Caos! ― Menshikov berrou. ― Vou desfiar seus ossos, dissolver sua alma, e mandar você de volta para o lodo primitivo de onde veio. Agora, me dê o escaravelho!
― Tentador ― Sadie disse. ― O que você acha, Carter?
Menshikov percebeu a armadilha tarde demais. Eu saltei para frente e o acertei na cabeça com a pá. Menshikov foi amassado. Arremessei seu corpo na areia, então me levantei e pisei nele em um pouco mais fundo. Eu o enterrei o melhor que pude, então Sadie apontou para o local do enterro disse a palavra para fogo. A areia derreteu, endurecendo em um bloco do tamanho de um caixão de vidro sólido. Eu teria cuspido nele, também, mas não tinha certeza se podia fazer isso com um bico de falcão.
Os demônios sobreviventes fizeram a coisa sensata. Eles fugiram de pânico. Alguns pularam no rio e se deixaram dissolver, o que era uma economia de tempo de verdade para nós.
― Não foi tão difícil ― Sadie falou.
Acho que podia dizer que a energia do Caos estava começando a sair dela, também. Mesmo quando ela tinha cinco anos e teve pneumonia, não acho que ela parecia tão ruim.
― Depressa ― eu disse.
Minha adrenalina estava sumindo rapidamente. Minha forma avatar estava começando a parecer como duzentos e vinte quilos de peso morto.
― Dê o escaravelho para Rá.
Ela assentiu, e correu na direção do Barco do Sol, mas só fez metade do caminho quando a tumba de vidro de Menshikov explodiu. A explosão de magia mais poderosa que eu já tinha visto era o feitiço ha-di de Sadie. Essa explosão era cerca de cinquenta vezes mais poderosa. Uma onde de areia e cacos de vidro de alta potência me acertou e picou meu avatar. De volta ao meu corpo normal, cego de dor, me arrastei para longe da voz risonha de Apófis.
― Onde você vai, Sadie Kane? ― Apófis chamou, sua voz agora tão profunda quanto um tiro de canhão. ― Onde está aquela garotinha malvada com meu escaravelho?
Pisquei a areia dos meus olhos. Vlad Menshikov... não, ele parecia Vlad, mas era Apófis agora, estava cerca de quinze metros de distância, espreitando em torno da borda da cratera que tinha feito na praia. Ou ele não me viu, ou assumiu que eu estivesse morto. Ele estava procurando por Sadie, mas ela não estava em lugar nenhum. A explosão deveria tê-la escondido na areia, ou pior.
Minha garganta fechou. Eu queria ficar de pé e enfrentar Apófis, mas meu corpo não funcionava. Minha magia estava esgotada. O poder do Caos estava extraindo minha força de vida. Só ficando perto de Apófis me senti como se estivesse sendo desfeito – minhas sinapses cerebrais, meu DNA, tudo que me fazia ser Carter Kane estava lentamente se dissolvendo. Finalmente, Apófis estendeu seus braços.
― Não importa. Vou escavar seu corpo mais tarde. Primeiro, vou cuidar do velho.
Por um segundo, achei que ele estava falando de Desjardins, que ainda estava deitado sem vida sobre o parapeito quebrado, mas Apófis escalou o barco, ignorando o Sacerdote-leitor Chefe, e se aproximou do trono de fogo.
― Olá, Rá ― ele disse em uma voz agradável. ― Tem sido um longo tempo.
Uma voz fraca de trás da cadeira disse:
― Não posso jogar. Vá embora.
― Gostaria de um acordo? ― Apófis perguntou. ― Costumávamos jogar tão bem juntos. Toda noite, tentando matar um ao outro. Você não lembra?
Rá enfiou a cabeça careca acima do trono.
― Acordo?
― Que tal um desfecho? Você costumava adorar desfechos, não é? Tudo o que você tem que fazer é sair daí e me deixar te devorar... quer dizer, te entreter.
― Querer um biscoito ― Rá disse.
― Que tipo?
― Biscoito de doninha.
Estou aqui para te dizer, que o comentário sobre biscoitos de doninha provavelmente salvou o universo conhecido. Apófis deu um passo para trás, obviamente confuso pelo comentário que foi até mais caótico que ele. E nesse momento, Michel Desjardins o golpeou.
O Sacerdote-leitor Chefe deveria estar se fingindo de morto, ou talvez ele só tenha se recuperado rápido. Ele se levantou e se jogou contra Apófis, jogando-o contra o trono de fogo.
Menshikov gritou em sua antiga voz rouca. Vapor silvou como água em um churrasco. As vestes de Desjardins pegaram fogo.
Rá se mexeu atrás do barco e jogou o cajado no ar como se aquilo fizesse os homens malvados irem embora. Lutei para ficar de pé, mas ainda me sentia como se estivesse carregando duzentos e vinte quilos extras.
Menshikov e Desjardins agarraram um ao outro em frente ao trono. Essa era a cena que eu tinha testemunhado no Salão das Eras: o primeiro momento de uma nova era. Eu sabia que deveria ajudar, mas me movi ao longo da praia, tentando avaliar o local onde eu tinha visto Sadie pela última vez. Caí de joelhos e comecei a cavar.
Desjardins e Menshikov lutavam para frente e para trás, gritando palavras de poder. Olhei e vi uma nuvem de hieróglifos e luz vermelha rodopiando-os enquanto o Sacerdote-leitor Chefe invocava o Maat e Apófis com a mesma rapidez dissolvia seus feitiços com o Caos.
Quanto a Rá, o todo poderoso deus sol, ele tinha se movido para a popa do barco e estava agachado atrás do leme.
Continuei cavando.
― Sadie ― murmurei. ― Vamos lá. Cadê você?
Pense, disse a mim mesmo. Fechei meus olhos. Pensei em Sadie – toda memória que tínhamos compartilhado desde o Natal. Tínhamos vivido separados por anos, mas nos últimos três meses, fiquei mais próximo dela que qualquer um no mundo. Se ela podia descobrir meu nome secreto enquanto eu estava inconsciente, com certeza eu podia encontrá-la em uma pilha de areia.
Me movi uns três metros para a esquerda e comecei a cavar de novo. Imediatamente arranhei o nariz de Sadie. Ela grunhiu, o que significava que pelo menos estava viva. Limpei seu rosto e ela tossiu. Então ela ergueu seus braços, e eu a puxei da areia.
Fiquei tão aliviado que quase chorei, mas sendo um cara machão, não fiz isso. [Cale a boca, Sadie. Eu estou contando essa parte.]
Apófis e Desjardins ainda estavam lutando logo à frente no barco de sol. Desjardins gritou Heh-sieh! E um hieróglifo brilhou entre eles:





Apófis saiu voando do barco como se tivesse sido enganchado por um trem em movimento. Ele passou bem acima de nós e caiu na areia cerca de doze metros de distância.
― Boa ― Sadie murmurou um pouco aturdida. ― Hieróglifo para “Volte para trás”.
Desjardins saiu cambaleando do barco do sol. Suas vestes ainda estavam ardendo em chamas, mas de sua manga ele puxou uma estatueta de cerâmica – uma cobra vermelha esculpida com hieróglifos.
Sadie engasgou.
― Um shabti de Apófis? A penalidade para fazer aquilo é a morte!
Pude entender por que. Imagens tinham poder. Em mãos erradas, elas podiam fortalecer ou até mesmo invocar o que está sendo representado, e uma estátua de Apófis era um jeito muito perigoso para fazer isso. Mas isso também era um ingrediente necessário para certos feitiços...
― Uma execração. Ele está tentando apagar Apófis.
― Isso é impossível! ― Sadie disse. ― Ele vai ser destruído!
Desjardins começou a cantar. Hieróglifos brilharam no ar em volta dele, girando em um cone de poder protetor. Sadie tentou se levantar, mas ela não estava em melhor forma que eu.
Apófis se sentou. Seu rosto era um pesadelo de queimaduras do trono de fogo. Ele parecia um hambúrguer semi-cozido que alguém tinha derrubado na areia. [Sadie disse que isso é muito grosseiro. Bem, me desculpe. É a verdade.] Quando ele viu a estátua nas mãos do Sacerdote-leitor Chefe, ele rugiu em ultraje.
― Você é louco, Michel? Você não pode me execrar!
― Apófis ― Desjardins cantou ― eu o nomeio Senhor do Caos, Serpente da Escuridão, Temor das Doze Casas, o Único Odiado...
― Pare com isso! ― Apófis berrou. ― Eu não posso ser contido!
Ele lançou uma explosão de fogo em Desjardins, mas a energia simplesmente se uniu à nuvem girando ao redor do Sacerdote-leitor Chefe, virando um hieróglifo para “calor”.
Desjardins cambaleou para frente, o envelhecimento diante de nossos olhos, ficando mais curvado e frágil, mas sua voz manteve-se forte.
― Eu falo pelos deuses. Eu falo pela Casa da Vida. Sou um servidor do Maat. Eu o expulso sob os pés.
Desjardins jogou a cobra vermelha, e Apófis caiu para o lado. O Senhor do Caos lançou tudo o que tinha para Desjardins – gelo, veneno, relâmpago, rochas – mas nada acertou. Tudo simplesmente virava hieróglifos no escudo do Sacerdote-leitor Chefe, o Caos forçado a padrões de palavras na linguagem divina da criação. Desjardins esmagou a cobra de cerâmica debaixo do pé. Apófis se contorceu de agonia. A coisa que costumava ser Vladimir Menshikov se desintegrou como uma concha de cera, e uma criatura se ergueu dele – uma cobra vermelha, coberta de lodo como um filhote novo. Começou a crescer, suas escamas vermelhas cintilando e seus olhos brilhando. Sua voz ressoou em minha mente: Não posso ser contido!
Mas estava tendo dificuldade para crescer. A areia se agitou em torno dele. Um portal foi aberto, ancorando o próprio Apófis.
― Eu apago o seu nome ― Desjardins recitou. ― Eu o removo da memória do Egito.
Apófis gritou. A praia implodiu ao seu redor, engolindo a serpente e sugando a areia vermelha para dentro do turbilhão.
Agarrei Sadie e corri para o barco. Desjardins desabou de joelhos de exaustão, mas de algum jeito consegui puxar seu braço e o arrastei para a praia. Juntos, Sadie e eu o rebocamos a bordo do barco de sol.
Rá finalmente saiu de seu esconderijo sob o leme. As luzes brilhantes tripularam os remos, e nos afastamos enquanto a praia inteira afundava nas águas escuras, lampejos de relâmpagos vermelhos ondulando debaixo da superfície.
Desjardins estava morrendo.
Os hieróglifos tinham desvanecido ao seu redor. Sua testa estava queimando. Sua pele estava tão seca e fina quanto papel de arroz, e sua voz era um sussurro áspero.
― A execração n-não vai ser o final ― ele avisou. ― Só comprei algum tempo para vocês.
Segurei sua mão como se ele fosse um velho amigo, não um inimigo passado. Depois de jogar senet com o deus da lua, comprar tempo não era alguma coisa que eu tinha ânimo.
― Por que você fez isso? ― perguntei. ― Você usou toda a sua força para bani-lo.
Desjardins sorriu fracamente.
― Não gosto muito de vocês. Mas estavam certos. Os velhos modos... nossa única chance. Conte a Amós... conte a Amós o que aconteceu.
Ele agarrou fracamente sua capa de pele de leopardo, e eu percebi que ele queria tirá-la. Eu o ajudei, e ele pressionou a capa em minhas mãos.
― Mostre isso para... os outros... Conte a Amós...
Seus olhos viraram, e o Sacerdote-leitor Chefe se foi. Seu corpo se desintegrou em hieróglifos – muitos para ler, a história de toda a sua vida. Então as palavras flutuaram para o Rio da Noite.
― Adeus ― Rá murmurou. ― Doninhas estão doentes.
Eu quase tinha esquecido o deus velho. Ele despencou em seu trono de novo, descansando sua cabeça na alça de seu cajado e golpeando seu mangual sem muita vontade nas luzes servidoras.
Sadie respirou instável.
― Desjardins nos salvou. Eu... eu não gostava muito dele, mas...
― Eu sei ― concordei. ― Mas temos que continuar. Você ainda tem o escaravelho?
Sadie puxou o escaravelho dourado se contorcendo de sua bolsa. Juntos, nos aproximamos de Rá.
― Pegue ― eu disse a ele.
Rá enrugou seu nariz já enrugado.
― Não quero um inseto.
― É a sua alma! ― Sadie disse. ― Você vai pegar, e vai gostar!
Rá parecia intimidado. Ele pegou o inseto, e para o meu terror, o enfiou na boca.
― Não! ― Sadie gritou.
Tarde demais. Rá tinha engolido.
― Oh, Deus ― Sadie disse. ― Ele deveria fazer isso? Talvez ele devesse fazer isso.
― Não gosto de insetos ― Rá murmurou.
Esperamos ele mudar para um rei jovem e poderoso. Em vez disso, ele arrotou. Ele ficou velho, estranho, e detestável.
Em um torpor, caminhei com Sadie de volta à frente do barco. Tínhamos feito tudo que pudemos, e ainda senti como se tivéssemos perdido. Enquanto navegávamos, a pressão da magia pareceu aliviar. O rio pareceu alisar, mas eu podia sentir que estávamos ascendendo rapidamente pelo Duat. Apesar disso, eu ainda sentia como se minhas entranhas estivessem derretendo.
Sadie não parecia melhor. As palavras de Menshikov ecoaram na minha cabeça:Mortais não podem deixar essa caverna vivos.
― É a doença do Caos ― Sadie disse. ― Não vamos fazer isso, não é?
― Temos que continuar. Pelo menos até amanhecer.
― Tudo aquilo ― Sadie disse ― e o que aconteceu? Recuperamos um deus senil. Perdemos Bes e o Sacerdote-leitor Chefe. E estamos morrendo.
Peguei a mão de Sadie.
― Talvez não. Olhe.
Na nossa frente, o túnel estava ficando mais brilhante. As paredes da caverna se dissolveram, e o rio se alargou. Dois pilares se levantavam da água – duas estátuas gigantes de escaravelhos douradas. Além delas o amanhecer brilhava na linha do horizonte de Manhattan. O Rio da Noite estava drenando em Nova York.
― Cada novo amanhecer é um novo mundo ― lembrei de nosso pai dizendo. ― Talvez sejamos curados.
― Rá, também? ― Sadie perguntou.
Eu não tinha uma resposta, mas estava começando a me sentir melhor, mais forte, como se tivesse tido uma boa noite de sono. Enquanto passávamos entre as estátuas de escaravelhos douradas, olhei para a nossa direita. Do outro lado da água, fumaça estava subindo do Brooklyn – lampejos de luzes multicoloridas e faixas de fogo enquanto criaturas aladas estavam em combate aéreo.
― Eles ainda estão vivos ― Sadie disse. ― Eles precisam de ajuda!
Viramos o barco do sol na direção de casa e navegamos direto para a batalha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário