segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Carter

Capítulo 13 - Um demônio entra em meu nariz

NESTE PONTO, EU DEVERIA MUDAR meu nome secreto para Morrendo de Vergonha da Minha Irmã, porque isso praticamente resumia a minha existência.
Vou pular nossos preparativos para a viagem, como Sadie convocou Walt e explicou a situação, como Bes e eu nos despedimos ao amanhecer e alugamos um carro de um dos “amigos de confiança” de Bes, e como o carro quebrou a meio caminho para o Cairo.
Basicamente, vou pular para a parte onde Bes e eu estávamos nos deslocando ruidosamente por uma estrada empoeirada na parte traseira de uma caminhonete dirigida por alguns beduínos, procurando por uma aldeia que já não existia.
Era fim de tarde, e eu estava começando a achar que a estimativa de Bes de precisar de um dia para encontrar al-Hamrah Makan era muito otimista.
A cada hora que perdíamos, meu coração se sentia mais pesado. Arrisquei tudo para ajudar Zia. Deixei Amós e nossos iniciados sozinhos na casa no Brooklyn para se defenderem contra o mago mais maligno no mundo. Deixei minha irmã continuar a busca pelo último pergaminho sem mim.
Se eu falhasse em encontrar Zia... bem, eu não posso falhar.
Viajar com nômades profissionais tinha algumas vantagens. Os beduínos conheciam todas as aldeias, fazendas e encruzilhadas empoeiradas do Egito. Eles estavam felizes em parar e perguntar aos habitantes locais sobre a aldeia desaparecida que nós buscávamos. Além disso, eles veneravam Bes. O trataram como um amuleto vivo de boa sorte.
Quando nós paramos para almoçar (o que levou duas horas), os beduínos nos deram até a melhor parte da cabra. Até onde eu poderia dizer, a melhor parte não era tão diferente da pior parte da cabra, mas eu suponho que era uma grande honra.
A única coisa ruim sobre viajar com Beduínos? Eles não tinham pressa. Levamos o dia todo para fazer nosso caminho para o sul ao longo do Vale do Nilo. A jornada era quente e tediosa. Na traseira da caminhonete, eu não podia mesmo falar com Bes sem ficar com a boca cheia de areia, então eu tive muito tempo para pensar.
Sadie descreveu minha obsessão muito bem. No momento em que ela me deu o nome da aldeia de Zia, eu não consegui me concentrar em mais nada. É claro que eu achei que fosse algum tipo de truque. Apófis estava tentando nos dividir e nos impedir de ter sucesso em nossa busca. Mas eu também acreditei que ele estava contando a verdade, só porque a verdade é o que me confunde mais.
Ele tinha destruído a aldeia de Zia quando ela era uma criança – por qual razão, eu não sei. Agora ela estava escondida lá em um sono mágico. A menos que eu a salvasse, Apófis poderia matá-la.
Por que ele não a tinha matado se ele já sabia onde ela estava? Eu não tinha certeza, e isso me preocupava. Talvez ele não tivesse poder ainda. Talvez ele não quisesse. Afinal, se ele estava tentando me atrair para uma armadilha, ela era a melhor isca.
Seja qual fosse o caso, Sadie estava certa: não era uma escolha racional para mim. Eu tinha que salvar Zia. Apesar disso, eu me sentia como um verme por deixar Sadie sozinha novamente.
Primeiro eu a tinha deixado ir para Londres embora eu soubesse que era uma má ideia. Agora a tinha enviado para localizar um pergaminho em uma catacumba cheia de múmias.
Com certeza, Walt poderia ajudá-la, e ela geralmente pode cuidar de si própria. Mas um bom irmão teria ter ficado com ela.
Sadie tinha acabado de salvar minha vida, e eu estava como “Ótimo. Vejo você depois. Divirta-se com as múmias”.
Apenas vou dizer que Walt é meu irmão. Ai.
Para ser sincero, Zia não foi a única razão para eu estar ansioso para sair por conta própria. Eu estava em choque porque Sadie havia descoberto meu nome secreto. De repente, ela me conhecia melhor que qualquer um no mundo. Eu me sentia como se ela tivesse me aberto na mesa de cirurgia, me examinado e me costurado de volta. Meu primeiro instinto foi fugir, por a maior distância possível entre nós dois.
Me perguntei se Rá tinha se sentido do mesmo jeito quando Ísis aprendeu seu nome – se esse foi o real motivo de ele ter se exilado: completa humilhação. Além do mais, eu precisava de tempo para processar o que Sadie tinha feito.
Há meses que estávamos tentando reaprender o caminho dos deuses. Tínhamos nos empenhado para descobrir como os antigos magos usavam os poderes dos deuses sem ficarem possuídos ou serem subjugados. Agora eu suspeitava que Sadie tivesse encontrado a resposta.
Tinha algo a ver com o ren do deus. Um nome secreto não era apenas um nome, assim como uma palavra mágica. Era a soma das experiências de um deus. Quanto mais você entender o deus, mais perto você fica de saber seu nome secreto, e mais você poderia canalizar seu poder. Se isso fosse verdade, então o caminho dos deuses era basicamente magia de ligação – encontrando uma semelhança entre duas coisas, como um saca-rolhas comum e um demônio-cabeça-de-saca-rolhas, e usando essa semelhança para formar um vínculo mágico.
Só que aqui, o vínculo era entre o mágico e o deus. Se você pudesse encontrar um traço em comum ou experiência, você poderia utilizar o poder do deus. Isso pode explicar como eu tinha explodido as portas no Hermitage com o Punho de Hórus – magia que eu nunca tinha sido capaz de fazer por conta própria.
Sem pensar naquilo, sem precisar combinar a alma com Hórus, eu tinha aproveitado suas emoções. Nós dois odiávamos nos sentir confinados. Eu tinha usado essa simples conexão para invocar um feitiço e quebrar as correntes. Agora, se eu pudesse descobrir como fazer coisas como essa de forma mais confiável, poderia nos salvar nas batalhas futuras...
Viajamos por quilômetros na caminhonete dos beduínos. O Nilo serpenteava através de campos verdes e marrons à nossa esquerda. Nós não tínhamos nada pra beber, exceto a água de uma jarra velha de plástico que tinha gosto de vaselina. A carne de cabra não estava assentando bem no meu estômago.
De vez em quando, eu me lembrava do veneno que percorria meu corpo e meu ombro começava a doer onde a tjesu heru tinha me mordido.
Em torno de seis horas da tarde chegamos à nossa primeira pista. Um velho fellahin, um camponês fazendeiro vendendo tâmaras à beira da estrada, disse que conhecia a aldeia que nós estávamos procurando.
Quando ouviu o nome de al-Hamrah Makan, ele fez um sinal de proteção contra o Mau-Olhado, mas já que Bes era quem havia perguntando, o velho nos contou o que sabia. Ele disse que Areias Vermelhas era um mau lugar, muito amaldiçoado. Ninguém o visitava atualmente. Mas o velho se lembrava da aldeia antes de ter sido destruída. Nós a acharíamos a dez quilômetros ao sul, numa curva do rio onde a areia tornava-se vermelho vivo.
Bem, dã, eu pensei, mas eu não podia deixar de ficar animado.
Os beduínos decidiram fazer acampamento para passar a noite. Eles não iriam conosco o resto do caminho, mas disseram que ficariam honrados se tomássemos emprestada sua caminhonete.
Alguns minutos depois, Bes e eu estávamos viajando na picape. Bes usava um chapéu flexível quase tão feio quanto sua camiseta havaiana. Ele estava sentado tão para baixo, que eu não tinha certeza se ele podia ver alguma coisa, principalmente porque ele estava com o painel quase no nível do olho.
Cada vez que atingíamos um obstáculo, bugigangas beduínas chocalhavam no espelho retrovisor – um disco de metal gravado com caligrafia árabe, uma árvore de natal – purificadores de ar em forma de pinheiro, alguns dentes de animal em uma tira de couro e um pequeno ícone de Elvis Presley, por razões que eu desconhecia.
A caminhonete não tinha nenhuma suspensão e dificilmente algum estofo nos assentos. Me senti como se estivesse montando um touro mecânico. Mesmo sem os solavancos, meu estômago já teria se revirado. Depois de meses de procura e espera, eu não podia acreditar que estava tão perto de encontrar Zia.
― Você parece horrível ― Bes disse.
― Obrigado.
― Quero dizer magicamente falando. Você não parece pronto para uma luta. O que quer que seja que está esperando por nós, entende que não vai ser amigável?
Sob a aba de seu chapéu, seu queixo se projetava como se ele estivesse se preparando para uma discussão.
― Você acha que isso é um erro ― falei. ― Acha que eu deveria ter ficado com Sadie.
Ele encolheu os ombros.
― Eu acho que se você estivesse prestando atenção, veria que isso tem escritoARMADILHA por toda parte. O antigo Sacerdote-Leitor Chefe, Iskandar, não teria escondido sua namorada...
― Ela não é minha namorada.
— ...sem colocar algumas magias de proteção em torno dela. Set e Apófis, aparentemente ambos, querem que você encontre esse lugar, o que significa que não pode ser bom para você. Você está deixando sua irmã e Walt por conta própria. E, além de tudo isso, estamos perambulando pelo quintal de Desjardins, e depois dessa façanha em São Petersburgo, Menshikov não vai descansar até encontrá-lo. Então, sim, eu diria que esta não é sua ideia mais brilhante.
Eu olhei para fora pelo para-brisa. Queria ficar bravo com Bes por me chamar de estúpido, mas eu estava com medo de que ele pudesse estar certo. Eu estava esperando por um reencontro feliz com Zia. As chances eram de eu nunca conseguir passar desta noite vivo.
― Talvez Menshikov ainda esteja se recuperando dos ferimentos da cabeça ― especulei, esperançoso.
Bes riu.
― Vá por mim, garoto. Menshikov já está atrás de você. Ele nunca se esquece de uma ofensa.
Sua voz estava ardendo de ira, como aconteceu em São Petersburgo, quando ele nos contou sobre o casamento anão. Eu me perguntava o que tinha acontecido a Bes naquele palácio, e por que ele ainda estava pensando nisso trezentos anos depois.
― Foi Vlad? ― perguntei. ― Foi ele quem capturou você?
Isso não parecia tão absurdo. Eu conheci vários mágicos que tinham séculos de idade. Mas Bes balançou a cabeça.
― Seu avô, o príncipe Alexander Menshikov ― Bes pronunciou o nome como se fosse um insulto grave. ― Ele era secretamente o chefe do Décimo Oitavo Nomo. Poderoso. Cruel. Um pouco como seu neto. Eu nunca lidei com um mágico como esse. Foi a primeira vez que fui capturado.
― Mas os magos não prenderam todos os deuses no Duat depois que o Egito caiu?
― A maioria de nós ― Bes concordou. ― Alguns dormiram dois milênios inteiros, até seu pai nos soltar. Outros acordaram ao longo do tempo e a Casa da Vida pôde encontrá-los e colocá-los de volta no Duat. Sekhmet escapou em 1918. Grande epidemia de gripe. Mas alguns deuses como eu estiveram no mundo mortal o tempo todo. Nos dias antigos, eu era só, você sabe, um cara simpático. Eu afugentava espíritos. Os plebeus gostaram de mim. Então, quando o Egito caiu, os romanos me adotaram como um de seus deuses. Depois, na Idade Média, os cristãos moldaram gárgulas semelhantes a mim, para proteger suas catedrais e outras coisas mais. Fizeram lendas sobre gnomos, anões, duendes prestativos, tudo baseado em mim.
― Duendes prestativos?
Ele fez uma careta.
― Você não acha que eu sou prestativo? Eu fico bem em uniformes verdes.
― Eu não preciso dessa imagem.
Bes bufou.
― De qualquer modo, a Casa da Vida nunca se preocupou em ir atrás de mim. Eu só mantive um perfil tranquilo e fiquei longe de problemas. Nunca havia sido capturado até a Rússia. Provavelmente ainda seria um prisioneiro lá se não fosse por...
Ele parou a si próprio, como se tivesse percebido que tinha falado demais. Ele saiu da estrada. A caminhonete sacudindo-se passando sobre mais areia e rochas, indo em direção ao rio.
― Alguém te ajudou a escapar? ― adivinhei. ― Bastet?
O pescoço do anão ficou vermelho.
― Não... não Bastet. Ela estava presa no abismo combatendo Apófis.
― Então...
― A questão é, estou livre, e tenho minha vingança. Eu consegui fazer Alexander Menshikov ser condenado por acusações de corrupção. Ele ficou humilhado, despojado de sua riqueza e títulos. Sua família inteira foi despachada para a Sibéria. O melhor dia da minha vida. Infelizmente, seu neto Vladimir retornou. Por fim, ele voltou para São Petersburgo, reconstruiu a fortuna de seu avô, e assumiu o Décimo Oitavo Nomo. Se Vlad tivesse a chance de me capturar...
Bes se mexeu no lugar do motorista, como se as molas estivessem ficando desconfortáveis.
― Eu acho que estou te contando isso porque... você é bom, garoto. A maneira como você se levantou pela sua irmã sobre a ponte de Waterloo, pronto para lutar comigo... aquilo precisou de muita coragem. E tentando montar um tjesu heru? Aquilo foi muito valente. Estúpido, mas valente.
― Hum, Obrigado.
― Você faz eu me lembrar de mim ― Bes continuou ― quando eu era um jovem anão. Você é teimoso. E quando se trata de problemas com garotas, você está completamente perdido.
― Problemas com garotas?
Eu pensei que ninguém poderia me embaraçar tanto como Sadie fez quando descobriu meu nome secreto, mas Bes estava fazendo um ótimo trabalho.
― Isso não é só um problema com uma garota.
Ele me olhou como se eu fosse um pobre cachorro perdido.
― Você deseja salvar Zia. Eu entendo isso. Quer que ela goste de você. Mas quando você salva alguém... isso complica as coisas. Não fique deslumbrado por alguém que não pode ter, especialmente se ela te deixa cego para alguém que é realmente importante. Não... não cometa meus erros.
Eu ouvi a dor em sua voz. Eu sabia que ele estava tentando ajudar, mas ainda me sentia esquisito recebendo conselhos de um deus de um-metro-e-vinte-de-altura em um chapéu feio.
― A pessoa que lhe resgatou ― eu disse. ― Era uma deusa, não era? Alguém além de Bastet... Alguém com quem você estava envolvido?
Os dedos do anão ficaram brancos no volante.
― Criança.
― Sim?
― Estou contente que tivemos esta conversa. Agora, se você valoriza os seus dentes...
― Eu vou calar a boca.
― Isso é bom ― Bes colocou o pé no freio. ― Porque acho que chegamos.
O sol estava se pondo nas nossas costas. Tudo a nossa frente estava banhado em luz vermelha, a areia, a água do Nilo, as montanhas no horizonte. Mesmo as folhas das palmeiras pareciam que estavam tingidas de sangue.
Set iria amar esse lugar, pensei.
Não havia nenhum sinal de civilização, apenas algumas garças-reais voando no alto e uma pequena ondulação ocasional no rio: talvez um peixe ou um crocodilo. Imaginei que essa parte do Nilo não estava muito diferente do tempo dos faraós.
― Vamos lá ― disse Bes. ― Traga suas coisas.
Bes não esperou por mim. Quando eu o alcancei, ele estava de pé na beira do rio, peneirando areia por entre os dedos.
― Não é apenas a luz ― percebi. ― Essa areia é realmente vermelha.
Bes assentiu com a cabeça.
― Você sabe por quê?
Minha mãe teria dito óxido de ferro ou algo parecido. Ela tinha uma explicação científica para tudo. Mas algo me disse que Bes não estava procurando por esse tipo de resposta.
― Vermelho é a cor do mal ― respondi. ― O deserto. Caos. Destruição.
Bes espanou suas mãos.
― Este foi um lugar ruim para se construir uma vila.
Olhei em volta em busca de qualquer sinal de um povoado. A areia vermelha estendida em ambos os sentidos por cerca de uma centena de metros. Árvores frondosas e salgueiros de grama delimitavam a área, mas a areia era completamente estéril. Do jeito que brilhava e transformava-se debaixo dos meus pés, lembrou-me dos montes de conchas secas de escaravelho no Duat, segurando Apófis. Eu realmente desejei que não tivesse pensado nisso.
― Não há nada aqui ― falei. ― Sem ruínas. Nada.
― Olhe novamente.
Bes apontou para o rio. Juncos velhos e mortos presos aqui e ali em uma área do tamanho de um campo de futebol. Então que percebi que os juncos não eram juncos, eram placas e postes de madeira em decomposição, os restos de habitações simples.
Andei até a beira d‘água. A alguns metros, ele estava calmo e raso o suficiente para que eu pudesse ver uma linha de tijolos submersos na lama: a fundação de um muro lentamente se dissolvendo em lama.
― A aldeia inteira afundou?
― Foi engolida ― Bes respondeu. ― O Nilo está tentando lavar o mal que aconteceu aqui.
Eu tremi. As feridas das presas no meu ombro começaram a doer novamente.
― Se é um lugar tão mau, porque Iskandar esconderia Zia aqui?
― Boa pergunta ― disse Bes. ― Se você quer encontrar a resposta, terá que caminhar por aí afora.
Uma parte de mim queria correr de volta para a caminhonete. A última vez que eu entrei em um rio – o Rio Grande em El Paso – não tinha ido tão bem. Nós combatemos o deus crocodilo Sobek e mal saímos com vida. Este era o Nilo. Deuses e monstros seriam muito mais fortes aqui.
― Você está vindo também, não é? ― perguntei a Bes.
O canto de seu olho estremeceu.
― Água corrente não é boa para os deuses. Afrouxa nossa ligação com o Duat...
Ele deve ter visto o olhar de desespero em meu rosto.
― Sim, tudo bem ― ele suspirou. ― Estou bem atrás de você.
Antes que eu pudesse desistir, coloquei um pé no rio, e afundei até o tornozelo.
― Nojento.
Eu entrei no rio, meus pés fazendo sons como uma vaca mascando goma. Um pouco tarde, percebi o quão mal preparado eu estava. Eu não tinha minha espada, porque a tinha perdido em São Petersburgo. Não tinha sido capaz de convocá-la de volta. Pelo que eu sabia, os magos da Rússia a tinham derretido.
Eu ainda tinha minha varinha, mas ela era melhor para feitiços de defesa. Se eu tivesse que ir para a ofensiva, estaria em uma séria desvantagem.
Eu tirei da lama uma vara velha e a usei para bisbilhotar ao redor. Bes e eu nos arrastamos pelas águas rasas, tentando encontrar algo de útil. Nós chutamos alguns tijolos, descobrindo alguns trechos de paredes intactas, e trouxe até alguns fragmentos de cerâmica.
Pensei sobre a história que Zia tinha me contado – como seu pai causou a destruição da aldeia por desenterrar um demônio preso em um jarro. Pelo que eu sabia, podia ser fragmentos desse mesmo jarro.
Nada nos atacou com exceção de mosquitos. Nós não encontramos nenhuma armadilha. Mas cada splash no rio me fazia pensar nos crocodilos (e não o tipo albino simpático como o Filipe no Brooklyn) ou o grande peixe-tigre dentuço que Zia havia me mostrado uma vez no Primeiro Nomo. Eu os imaginei nadando em torno de meus pés, tentando decidir qual das pernas parecia mais apetitosa.
Com o canto do olho, eu ficava vendo ondinhas e pequenos redemoinhos como se alguma coisa estivesse me seguindo. Quando eu golpeei a água com minha vara, não havia nada ali. Depois de uma hora de busca, o sol já estava quase desaparecendo.
Nós devíamos voltar para Alexandria para nos encontrar com Sadie pela manhã, o que nos deixou quase tempo nenhum para encontrar Zia. E vinte e quatro horas a contar de agora, na próxima vez que o sol se pusesse, o equinócio começaria.
Continuamos procurando, mas não encontramos nada mais interessante do que uma bola de futebol murcha e lamacenta e um conjunto de dentaduras. [Sim, Sadie, elas eram ainda mais nojentas que a do vovô.]
Parei para esmagar os mosquitos do meu pescoço. Bes pegou algo de dentro d‘água – um peixe se contorcendo ou um sapo – e enfiou-o em sua boca.
― Você tem que fazer isso?
― O quê? ― perguntou, ainda mastigando. ― É hora do jantar.
Eu me virei com nojo e cutuquei minha vara na água. Tum. Eu atingi alguma coisa mais dura que tijolos de barro ou madeira. Aquilo era uma pedra.
Tracei o fundo com a minha vara. Não era uma rocha. Era uma fileira plana de blocos talhados. A borda descia para outra fileira de pedras cerca de um pé menor: como escadas, levando para baixo.
― Bes ― chamei.
Ele nadou cuidadosamente até onde eu estava. A água chegou quase até seus ombros. Sua forma tremeluzia na corrente como se ele pudesse desaparecer a qualquer momento. Mostrei a ele o que eu tinha encontrado.
― Hum.
Ele mergulhou sua cabeça abaixo d‘água. Quando voltou, sua barba estava coberta de ervas daninhas.
― Escadas, tudo bem. Me lembra a entrada de uma tumba.
― Uma tumba ― repeti ― no meio de uma aldeia?
À minha esquerda, houve outro splash. Bes franziu o cenho.
― Você ouviu isso?
― Sim. Desde que entramos na água. Você não tinha percebido?
Bes colocou o dedo na água como se estivesse testando a temperatura.
― Nós devemos nos apressar.
― Por quê?
― Provavelmente nada. ― Ele mentia ainda pior do que o meu pai. ― Vamos dar uma olhada nesta tumba. Divida o rio.
Ele disse isso como se fosse um pedido perfeitamente normal, como passe o sal.
― Eu sou um mago de combate ― falei. ― Eu não sei como dividir um rio.
Bes pareceu ofendido.
― Ah, vamos lá. Isso é uma coisa normal. Nos dias de Khufu, soube de um mago que dividiu o Nilo para que pudesse ir no fundo e recuperar o colar de uma garota. Então houve aquele camarada israelita, Mickey.
― Moisés?
― Sim, ele ― Bes disse. ― De qualquer modo, você é totalmente capaz de dividir a água. Nós temos pressa.
― Se é tão fácil, porque você não faz?
― Agora ele toma uma atitude. Eu te disse, garoto, água corrente interfere no poder divino. Provavelmente é uma das razões de Iskandar ter escondido sua amiga lá embaixo, se é onde ela está. Você pode fazer isso. Apenas...
De repente, ele ficou tenso.
― Vá para a margem.
― Mas você disse...
― Agora!
Antes que pudéssemos nos mover, o rio irrompeu em torno de nós. Três trombas d‘água separadas explodiram para cima, e Bes foi puxado para debaixo d‘água. Eu tentei correr, mas meus pés atolaram na lama. As trombas d‘água me rodeavam. Elas espiralavam em formas humanas, ombros e braços feitos de tiras de águas agitadas, como se fossem múmias criadas a partir do Nilo. Seis metros abaixo, Bes irrompeu para a superfície.
― Demônios aquáticos! ― ele balbuciou ― Desvie deles!
― Como? ― gritei.
Dois dos demônios aquáticos se voltaram para Bes. O deus anão tentou manter o equilíbrio, mas o rio fervia em corredeiras, e já estava acima de seus ombros.
― Vamos, garoto! ― gritou ― todo pastor costumava saber encantos contra demônios aquáticos!
― Bem, me arranje um pastor, então!
Bes gritou:
― BOO!
E o primeiro demônio aquático evaporou. Ele se virou para o segundo, mas antes que pudesse assustá-lo, o demônio aquático explodiu em seu rosto.
Bes engasgou e tropeçou, a água atirando-se de suas narinas. O demônio se chocou contra ele, e Bes afundou novamente.
― Bes! ― gritei.
O terceiro demônio surgiu próximo de mim. Ergui minha varinha e fiz um fraco escudo de luz azul. O demônio bateu contra ele, me jogando para trás. Sua boca e olhos giravam como mini-redemoinhos. Olhar em seu rosto era como usar uma bacia de vidência.
Eu podia sentir a fome sem fim daquela coisa, seu ódio pelos seres humanos. Ele queria quebrar cada barragem, devorar cada cidade, e afogar o mundo em um mar de caos. E iria começar me matando.
Minha concentração vacilou. A coisa avançou em mim, destruindo meu escudo e me puxando para debaixo d‘água. Já entrou água pelo seu nariz? Imagine uma onda inteira entrar no seu nariz – uma onda inteligente que sabe exatamente como te afogar.
Eu perdi minha varinha. Meus pulmões estavam cheios de líquido. Todos os pensamentos racionais se dissolveram no pânico. Eu me debati e chutei, sabendo que estava à apenas um metro debaixo água, mas eu não conseguia me levantar. Eu não conseguia ver nada através da escuridão.
Minha cabeça rompeu à superfície, e vi uma vaga imagem de Bes se lançando em cima de uma tromba d‘água, gritando:
― Boo... Já! Seja mais medroso!
Então eu fui para baixo de novo, minhas mãos tentando agarrar a lama. Meu coração batia forte. Minha visão começou a escurecer. Mesmo se eu pudesse ter pensado em uma magia, não poderia tê-la dito. Gostaria de ter poderes de deus do mar, mas eles não eram exatamente especialidade de Hórus. Eu estava perdendo a consciência quando algo agarrou meu braço. Eu dei socos freneticamente, e meu punho atingiu um rosto barbudo.
Rompi à superfície de novo, ofegando. Bes estava meio-afogado próximo de mim, gritando:
― Estúpido... tentando salvar sua...
O demônio me puxou para baixo novamente, mas de repente, meus pensamentos ficaram claros. Talvez esse último bocado de oxigênio tenha feito isso. Ou talvez esmurrar Bes tenha me tirado do pânico.
Lembrei que Hórus tinha vivido uma situação como essa antes. Set tinha tentado afogá-lo uma vez, puxando-o para o Nilo. Eu me conectei a essa memória e fiz dela minha própria. Alcancei o Duat e canalizei o poder do deus da guerra para dentro de meu corpo.
A fúria me preencheu. Eu não seria encurralado. Eu segui o Caminho de Hórus. Eu nãodeixaria uma estúpida múmia líquida me afogar em 90 centímetros de água. Minha visão ficou vermelha. Eu gritei, expulsando a água de meus pulmões em uma grande explosão.
WHOOOM!
O Nilo explodiu. Eu desmoronei em um campo de lama. A princípio, eu estava cansado demais para fazer qualquer coisa além de tossir. Quando me controlei e consegui parar de cambalear, limpei o lodo dos meus olhos e pude ver que o rio tinha mudado seu curso. Ele agora contornava as ruínas da aldeia.
Expostos na lama vermelho-brilhante estavam tijolos e placas, lixo, roupas velhas, o para-lama de um carro e ossos que poderiam ter sido de um animal ou de um ser humano. Alguns peixes se debatiam ao redor, se perguntando aonde o rio tinha ido. Não havia nenhum sinal de demônios aquáticos.
A cerca de três metros de distância, Bes estava olhando zangado para mim. Ele tinha um nariz sangrando e estava enterrado na lama até a cintura.
― Geralmente, quando você divide um rio ― ele murmurou ― isso não implica esmurrar um anão. Agora, me tire daqui!
Eu consegui livrá-lo, o que causou um ruído de sucção tão impressionante que desejei que eu o tivesse gravado. [E não, Sadie, eu não vou tentar fazê-lo pelo microfone.]
― Sinto muito ― gaguejei. ― Eu não pretendia...
Ele acenou de lado as desculpas.
― Você lidou com os demônios aquáticos. Isso é o que importa. Agora nós temos que ver se você pode lidar com isso.
Eu me virei e vi a tumba. Era uma sepultura retangular do tamanho de um closetgrande demais, alinhado com blocos de pedra. Degraus conduziam até uma porta fechada de pedra gravada com hieróglifos. O maior deles era o símbolo da Casa da Vida:



― Aqueles demônios estavam guardando a entrada ― Bes disse. ― Talvez seja pior ali dentro.
Debaixo do símbolo, reconheci uma linha de hieróglifos fonéticos:


― Z – I – A ― eu li. ― Zia está aí dentro.
― E isso ― resmungou Bes ― é o que nós chamamos de armadilha nos negócios da magia. Última chance para mudar de ideia, garoto.
Mas eu não estava realmente escutando. Zia estava lá embaixo. Mesmo se eu soubesse o que estava prestes a acontecer, não acho que poderia ter me parado. Desci as escadas e abri a porta.

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