segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 29 - Zia marca um encontro

[SIM, MUITO OBRIGADO, SADIE. Você conta a parte do Mundo dos Mortos. Eu tenho que descrever a Interestadual 10 no Texas.]
Resumindo uma longa história: demorou muito e foi completamente maçante, a menos que você considere divertido ver vacas pastando.
Saímos de Nova Orleans por volta da uma da manhã no dia 28 de dezembro, um dia antes da data em que Set planejava destruir o mundo. Bastet tinha “pegado emprestado” um RV – uma espécie de motor home, remanescente do socorro pós-Furacão Katrina.
No início, Bastet tinha sugerido viajarmos de avião, mas depois que contei a ela meu sonho com os magos explodindo uma aeronave, concordamos que voar não seria boa ideia. Nut, deusa do céu, nos prometera uma viagem segura até Memphis, mas eu não queria abusar da sorte, não quando nos aproximávamos mais e mais de Set.
— Set não é nosso único problema — alertou Bastet. — Se sua visão estiver correta, os magos estão próximos. E não são magos quaisquer, mas o próprio Desjardins.
— E Zia — acrescentou Sadie, só para me irritar.
No final, decidimos que era mais seguro viajar de carro, mesmo sendo mais lento. Com sorte, chegaríamos em Phoenix bem a tempo de desafiar Set. Quanto à Casa da Vida, tudo que podíamos fazer era torcer para não encontrar ninguém de lá durante nossa tarefa. Depois de cuidarmos de Set, talvez os magos concluíssem que éramos legais. Talvez...
Eu ainda pensava em Desjardins, tentando decidir se ele podia ser realmente um hospedeiro para Set. Um dia atrás, isso tinha feito sentido para mim. Desjardins queria destruir a família Kane. Ele odiava nosso pai e nos odiava. Devia ter esperado por décadas, provavelmente séculos, pela morte de Iskandar, porque assim poderia se tornar Sacerdote-leitor Chefe. Poder, ressentimento, arrogância, ambição: Desjardins tinha tudo. Se Set procurava uma alma gêmea, literalmente, não poderia encontrar nada melhor. E se Set pudesse começar uma guerra entre os deuses e os magos com o Sacerdote-leitor sob seu controle, o único vencedor seria o conjunto das forças do caos.
Além do mais, Desjardins era um cara fácil de odiar. Alguém tinha sabotado a casa de Amós e alertado Set sobre a chegada de meu tio. Mas a maneira como Desjardins salvara todas aquelas pessoas no avião... Isso não parecia uma atitude típica do Lorde do Mal.
Bastet e Khufu se revezaram na direção, enquanto Sadie e eu cochilávamos e acordávamos. Eu não sabia que babuínos conseguiam dirigir um RV, mas Khufu era bom motorista. Quando acordei, já perto do amanhecer, ele enfrentava a hora do rushmatinal em Houston, mostrando as presas e gritando muito, e nenhum outro motorista parecia perceber nada de extraordinário.
Para o café da manhã, Sadie, Bastet e eu nos sentamos na cozinha do motor home, enquanto armários batiam, a louça tilintava e quilômetros e quilômetros de nada desfilavam pelas janelas. Bastet tinha pego comida e bebida (e Friskies, é claro) de uma loja de conveniência em Nova Orleans quando estávamos partindo, mas ninguém estava com fome. Percebi que Bastet estava ansiosa. Ela já tinha rasgado quase todo o estofamento do veículo, e agora usava a mesa da cozinha para afiar as unhas.
Sadie passava o tempo todo abrindo e fechando a mão, olhando para a pena da verdade como se fosse um telefone que ela quisesse ouvir tocar. Desde seu desaparecimento no Salão do Julgamento, ela estava agindo de um jeito distante e quieto. Não que eu esteja me queixando, mas não era ela.
— O que aconteceu com Anúbis? — perguntei pela milésima vez.
Ela olhou para mim, pronta para arrancar minha cabeça. Depois, aparentemente, decidiu que o esforço não valia a pena. Seus olhos voltaram à pena que brilhava na palma de sua mão.
— Nós conversamos — começou, cautelosa. — Ele me fez algumas perguntas.
— Que tipo de perguntas?
— Carter, sem interrogatório. Por favor.
Por favor? Agora eu tinha certeza de que aquela não era Sadie.
Olhei para Bastet, mas ela não foi muito útil. Ela raspava as garras na mesa devagar, deixando sulcos na fórmica.
— Qual é o problema? — perguntei a ela.
Bastet manteve os olhos fixos na mesa.
— No Mundo dos Mortos, eu abandonei vocês. De novo.
— Anúbis a afugentou — retruquei. — Não faz mal.
Bastet me fitou com aqueles olhos amarelos, e tive a sensação de que eu só tinha piorado a situação.
— Fiz uma promessa a seu pai, Carter. Em troca de minha liberdade, ele me deu uma missão ainda mais importante que lutar contra a Serpente: proteger Sadie. E, se fosse necessário, proteger vocês dois.
Sadie corou.
— Bastet, isso é... Quer dizer, obrigada, é claro, mas não somos mais importantes do que lutar contra... você sabe... ele.
— Vocês não entendem — insistiu Bastet. — Os dois não são apenas o sangue dos faraós. São os filhos da realeza mais poderosos nascidos nos últimos séculos. A única chance de reconciliar os deuses e a Casa da Vida, de reaprendermos os antigos métodos, antes que seja tarde demais. Se dominarem o caminho dos deuses, poderão encontrar outros com sangue real e ensinar a eles. Poderão revitalizar a Casa da Vida. O que seus pais fizeram, tudo o que eles fizeram, foi preparar o caminho para vocês.
Sadie e eu ficamos em silêncio. Quer dizer, o que se pode responder a esse tipo de declaração? Sempre soube que meus pais me amavam, mas a ponto de morrerem por mim? De acreditar que isso era necessário para que Sadie e eu pudéssemos realizar feitos incríveis, do tipo salvar o mundo? Eu não queria nada disso.
— Eles não queriam deixá-los sozinhos — continuou Bastet, como se lesse minha expressão. — Não planejaram que fosse assim, mas sabiam que libertar os deuses seria perigoso. Acreditem, eles compreendiam quanto vocês dois são especiais. No início, eu os protegia porque havia prometido. Agora, mesmo sem promessa, eu os protegeria. Vocês dois são como filhotes para mim. Nunca mais os abandonarei.
Confesso que fiquei com um nó na garganta.
Nunca ninguém tinha me chamado de filhote antes. Não com esse sentido de... bem, gatinho.
Sadie fungou. Limpou alguma coisa do rosto e disse:
— Não vai nos lamber, vai?
Era bom ver Bastet sorrir novamente.
— Vou tentar resistir. E a propósito, Sadie, estou orgulhosa de você. Confrontar Anúbis no território dele... Aqueles deuses da morte podem ser tipos bastante cruéis.
Sadie deu de ombros. Ela parecia estranhamente incomodada.
— Bem, eu não o chamaria de cruel. Quer dizer, ele nem parece ser muito mais que um adolescente.
— Do que está falando? — protestei. — Ele tinha cabeça de chacal!
— Não, quando ele tomou a forma humana.
— Sadie... — Eu começava a ficar realmente preocupado com ela. — Quando Anúbis mudou de forma, continuou com cabeça de chacal. Era grande, assustador e, sim, bastante cruel. Como foi que você o viu?
Minha irmã ficou vermelha.
— Como um... mortal.
— Deve ter sido um encantamento — explicou Bastet.
— Não — Sadie protestou. — Não pode ter sido.
— Bem, não tem importância — decidi. — Temos a pena.
Sadie se mexeu com certo nervosismo, como se aquilo fosse muito importante. Depois, ela fechou a mão e a pena da verdade desapareceu.
— Não vai adiantar nada se não tivermos o nome secreto de Set.
— Estou cuidando disso. — Bastet olhou em volta, como se temesse ser ouvida por alguém em algum lugar. — Tenho um plano. Mas é perigoso.
— Qual é? — eu quis saber.
— Vamos precisar fazer uma parada. Não quero nos atrasar até estarmos mais próximos, mas fica no caminho. E não devemos demorar muito.
Tentei fazer um cálculo.
— Hoje é o segundo Dia do Demônio?
Bastet assentiu.
— O dia em que Hórus nasceu.
— E o aniversário de Set é amanhã, terceiro Dia do Demônio. Isso significa que temos cerca de vinte e quatro horas antes que ele destrua a América do Norte.
— E se ele nos pegar — acrescentou Sadie — seu poder será ainda maior.
— Temos tempo suficiente — disse Bastet. — De Nova Orleans a Phoenix de carro, a viagem é de aproximadamente vinte e quatro horas, e já estamos na estrada há mais de cinco. Se não tivermos mais nenhuma surpresa desagradável...
— Como as que temos todos os dias?
— Sim — admitiu Bastet. — Como essas.
Eu respirei fundo. Vinte e quatro horas e tudo chegaria ao fim, de uma forma ou de outra. Ou salvamos papai e detemos Set, ou tudo terá sido em vão – não só o que Sadie e eu fizemos, mas todos os sacrifícios de nossos pais também. De repente, eu me senti como se estivesse novamente no mundo inferior, em um daqueles túneis do Primeiro Nomo, com um milhão de toneladas de pedras sobre minha cabeça. Uma pequena mudança no solo, e tudo viria abaixo.
— Bem, se precisarem de mim, estarei lá fora, brincando com objetos cortantes.
Peguei minha espada e fui para a traseira do RV.
Eu nunca tinha visto um motor home com varanda. A placa no alto da porta traseira avisava que o espaço não deveria ser usado com o veículo em movimento, mas saí assim mesmo.
Não era o melhor lugar do mundo para praticar com uma espada. Era pequeno demais, e duas cadeiras ocupavam quase todo o espaço. O vento frio me castigava e cada solavanco do veículo me fazia perder o equilíbrio. Mas era o único lugar onde eu podia ficar sozinho. Eu precisava pensar.
Treinei evocar minha espada do Duat e mandá-la de volta. Logo conseguia comandá-la em quase todas as tentativas, desde que não perdesse a concentração. Depois, pratiquei alguns movimentos – bloqueios, esquiva e ataque – até Hórus não se conter e começar a me dar conselhos.
Levante mais a lâmina, ele ensinou. Descreva um arco mais largo, Carter. A arma é desenhada para enganchar a arma do inimigo.
Cale a boca, respondi. Onde estava quando precisei de ajuda na quadra de basquete?
Mas tentei segurar a espada como ele dizia ser o certo.
A estrada se estendia por longas faixas de território semiárido. De vez em quando, passávamos pelo caminhão de um fazendeiro ou por uma daquelas peruas familiares, e o motorista olhava espantado para mim: um garoto de pele morena com uma espada na varanda de um motor home. Eu sorria e acenava, e Khufu pisava fundo no acelerador.
Depois de uma hora de treino, minha camisa estava colada ao peito, molhada com suor gelado. Minha respiração estava pesada. Decidi me sentar e fazer um intervalo.
— Está chegando — Hórus me disse.
A voz dele pareceu mais real, como se não estivesse em minha cabeça.
Olhei para o lado e o vi brilhando numa aura dourada. Sentado na outra cadeira em sua armadura de couro, os pés calçando sandálias e apoiados na balaustrada da varanda. Sua espada, uma cópia fantasma da minha, estava apoiada na cadeira, ao lado dele.
— O que está chegando? — perguntei. — A luta contra Set?
— Isso, com certeza — confirmou Hórus. — Mas antes há outro desafio, Carter. Prepare-se.
— Ótimo. Como se eu já não tivesse desafios demais.
Os olhos de Hórus brilharam, um dourado, o outro prateado.
— Quando eu era criança, Set tentou me matar muitas vezes. Minha mãe e eu estávamos sempre fugindo, e me escondi dele até ter idade para enfrentá-lo. O Lorde Vermelho enviará as mesmas forças contra você. A próxima vai ser...
— No rio — adivinhei, lembrando a última viagem de minha alma. — Algo ruim vai acontecer em um rio. Mas qual é o desafio?
— Você precisa ficar atento... — A imagem de Hórus começou a desaparecer e o deus franziu o cenho. — O que é isso? Alguém está tentando... É um poder diferente...
Ele foi substituído pela imagem cintilante de Zia Rashid.
— Zia!
Eu me levantei, lembrando de repente que estava suado e nojento, com a aparência de alguém que fora arrastado pelo Mundo dos Mortos.
— Carter? — A imagem tremulava.
Ela segurava o cajado e usava um sobretudo cinza por cima das vestes, como se estivesse em algum lugar frio. Seus cabelos curtos e negros dançavam em volta do rosto.
— Graças a Tot o encontrei.
— Como chegou aqui?
— Não temos tempo para isso! Escute: estamos atrás de vocês. Desjardins, eu e os outros. Não sabemos exatamente onde vocês estão. Os feitiços de rastreamento de Desjardins não conseguem localizá-los com exatidão, mas ele sabe que estamos nos aproximando. E sabe para onde vocês vão. Phoenix.
Minha mente entrou em modo turbo.
— Então, ele finalmente acredita que Set foi libertado? Vocês vão nos ajudar?
Zia balançou a cabeça.
— Ele vem detê-los!
— Deter-nos? Zia, Set se prepara para explodir o continente inteiro! Meu pai... — Minha voz falhou. Odiava parecer tão amedrontado e impotente. — Meu pai está com problemas.
Zia estendeu a mão brilhante, mas era só uma imagem. Nossos dedos não podiam se tocar.
— Carter, eu sinto muito. Você precisa entender o ponto de vista de Desjardins. A Casa da Vida vem tentando manter os deuses trancafiados há séculos, para impedir que algo como isso aconteça. Agora que você os libertou...
— Não foi minha ideia!
— Eu sei, mas você está tentando enfrentar Set usando magia divina. Os deuses não podem ser controlados. Você pode acabar causando mais danos ainda. Se deixasse a Casa da Vida cuidar disso...
— Set é muito forte. E eu posso controlar Hórus. Posso resolver tudo isso.
Zia balançou a cabeça.
— Vai ficar mais difícil quando se aproximar de Set. Você não tem nem ideia.
— E você tem?
Ela olhou, nervosa, para a esquerda. Sua imagem ficou indistinta, como uma televisão com problemas de sinal.
— Não temos muito tempo. Mel logo vai sair do banheiro.
— Vocês têm um mago chamado Mel?
— Apenas escute. Desjardins está nos dividindo em duas equipes. O plano é cercar vocês pelas laterais. Se minha equipe o encontrar primeiro, acho que posso convencer Mel a suspender o ataque ou, pelo menos, adiá-lo por tempo suficiente para conversarmos. Depois, talvez possamos pensar num jeito de falar com Desjardins, convencê-lo de que precisamos agir juntos, em colaboração.
— Não me leve a mal, mas por que eu confiaria em você?
Ela comprimiu os lábios, com uma expressão verdadeiramente magoada. Em parte, eu me sentia culpado, mas também temia que tudo fosse só um truque.
— Carter... tenho algo a lhe dizer. Algo que pode ajudar, mas que precisa ser dito pessoalmente.
— Fale agora.
— Pelo bico de Tot! Você é muito teimoso!
— Sim, é uma qualidade.
Nós nos olhamos em silêncio por um instante. A imagem desaparecia, mas eu não queria que ela fosse embora. Queria conversar mais.
— Se não confia em mim, vou ter de confiar em você — decidiu Zia. — Vou dar um jeito de estar em Las Cruces, no Novo México, hoje à noite. Se decidir me encontrar, talvez possamos convencer Mel. Então, juntos, convenceremos Desjardins. Você vai?
Queria prometer que sim, só para vê-la, mas me imaginei tentando convencer Sadie ou Bastet de que seria boa ideia.
— Não sei, Zia.
— Pense — pediu ela. — E, Carter, não confie em Amós. Se o vir... — Ela arregalou os olhos. — Mel vem vindo! — cochichou.
Zia moveu o cajado diante do próprio rosto e sua imagem desapareceu.

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