domingo, 18 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 26 - A bordo do Rainha Egípcia

CONSIDERANDO O QUE SE PODERIA ESPERAR de uma viagem ao Mundo dos Mortos, até que o barco era bem legal. Tinha vários conveses com balaustradas ornamentadas pintadas de verde e preto. As rodas laterais reviravam o rio formando uma espuma densa, e, ao lado da casa das máquinas, o nome da embarcação brilhava em letras douradas: RAINHA EGÍPCIA.
À primeira vista, você ia pensar que o barco era só uma atração turística: um cassino flutuante ou um cruzeiro para idosos. No entanto, olhando com mais atenção, você começava a notar detalhes estranhos. O nome do barco estava escrito em demótico e em hieróglifos sob as palavras em inglês. Das chaminés brotava fumaça brilhante, como se os motores queimassem ouro. Bolas de fogo multicolorido flutuavam pelo convés. E na proa do barco, dois olhos pintados se moviam e piscavam, vigiando o rio em busca de possíveis problemas.
— Que esquisito — murmurou Sadie.
Eu assenti.
— Já vi olhos pintados em barcos antes. Ainda fazem isso no Mediterrâneo. Mas, normalmente, eles não se movem.
— O quê? Não, não aqueles olhos idiotas. A mulher no convés mais alto. Aquela não é... — Sadie sorriu. — Bastet!
Sim, nossa felina preferida se debruçava na janela da cabine do comandante. Eu me preparava para acenar quando notei a criatura ao lado de Bastet, segurando o leme. Tinha o corpo de um humano e vestia um uniforme branco de capitão. Mas, no lugar da cabeça, o que saía da gola do uniforme era um machado de duas lâminas. E não estou falando de um machado pequeno de cortar lenha. Estou falando de um machado de guerra: duas lâminas em meia-lua, uma na frente, onde deveria haver um rosto, outra atrás, o fio com manchas muito suspeitas de um líquido vermelho que respingou e secou.
O navio parou no píer. Bolas de fogo começaram a se mover de um lado para o outro – baixando a prancha de embarque, amarrando cordas e fazendo basicamente todo o trabalho da tripulação. Como eles conseguiam tudo isso sem mãos e sem incendiar tudo,
não sei, mas aquela foi a coisa mais estranha que vi em uma semana.
Bastet desceu da cabine. Ela nos abraçou quando embarcamos – incluindo Khufu, que tentou retribuir o gesto de afeto catando alguns piolhos.
— Fico feliz por terem sobrevivido! — Bastet nos disse. — O que aconteceu?
Contamos o básico, e os cabelos dela se arrepiaram novamente.
— Elvis? Gah! Tot está ficando cruel com a idade. Bem, não posso dizer que é uma alegria estar a bordo deste barco novamente. Odeio água, mas suponho que...
— Já esteve neste barco? — perguntei.
O sorriso de Bastet tremeu.
— Um milhão de perguntas, como sempre. Mas vamos comer primeiro. O capitão nos aguarda.
Eu não estava ansioso por conhecer um machado gigante, nem animado para mais um jantar de queijo-quente e Friskies, mas seguimos Bastet até o interior do barco.
A sala de jantar era ricamente decorada ao estilo egípcio. Painéis coloridos retratando deuses cobriam as paredes. Colunas douradas sustentavam o teto. Uma longa mesa de refeições oferecia todo o tipo de alimento que alguém podia desejar: sanduíches, pizzas, hambúrgueres, comida mexicana, tudo. Era uma compensação mais do que razoável pelo churrasco de Tot, que tínhamos perdido.
Sobre uma mesa auxiliar havia um balde de gelo, uma fileira de cálices dourados e uma máquina de refrigerante com umas vinte opções. As cadeiras de mogno eram entalhadas de forma a parecerem babuínos, o que me fez lembrar a Sala da Selva em Graceland, mas Khufu pareceu gostar delas. Ele gritou com sua cadeira, só para mostrar quem mandava ali, depois se sentou. Khufu pegou um mamão de uma cesta de frutas e começou a descascá-lo.
Do outro lado da sala, uma porta se abriu e o homem-machado entrou. Ele teve de se abaixar para passar sob o batente.
— Lorde e Lady Kane — disse o capitão se curvando.
A voz dele era uma vibração que ressonava na lâmina frontal de sua cabeça de machado. Uma vez, vi um vídeo de um cara tirando música de uma serra, batendo nela com um martelo, e era esse tipo de som que tinha a voz do capitão.
— É uma honra tê-los a bordo.
— Lady Kane — repetiu Sadie. — Gosto disso.
— Eu sou Lâmina Suja de Sangue — o capitão se apresentou. — Quais são as ordens?
Sadie levantou uma sobrancelha para Bastet.
— Ele espera ordens nossas?
— Desde que sejam razoáveis, sim — confirmou Bastet. — Ele serve a sua família. Seu pai... — Ela pigarreou. — Bem, seu pai e sua mãe conjuraram este barco.
O homem-machado emitiu um som desaprovador.
— Não contou a eles, deusa?
— Vou chegar lá — resmungou ela.
— Não nos contou o quê? — perguntei.
— Apenas detalhes. O barco pode ser conjurado uma vez por ano, e só em tempos de grande necessidade. Agora precisam dar as ordens ao capitão. Ele precisará receber orientações claras se quisermos proceder, ah, com segurança.
Tentei adivinhar o que incomodava Bastet, mas o homem-machado aguardava nossas ordens, e as manchas de sangue seco em suas lâminas sugeriam que era melhor não fazê-lo esperar muito.
— Precisamos visitar o Salão do Julgamento — informei a ele. — Leve-nos ao Mundo dos Mortos.
Lâmina Suja de Sangue vibrou, pensativo.
— Tomarei as providências, Lorde Kane, mas vai levar algum tempo.
— Não temos tempo. — Eu olhei para Sadie. — Hoje é... o quê? Noite de vinte e sete de dezembro?
Ela assentiu.
— Depois de amanhã, quando o sol nascer, Set completará sua pirâmide e destruirá o mundo, a menos que o impeçamos. Portanto, sim, Capitão Lâmina Muito Grande ou seja lá qual for seu nome, estamos com um pouco de pressa.
— Faremos, é claro, o melhor que pudermos — respondeu Lâmina Suja de Sangue, embora sua voz soasse um pouco, hum, cortante. — A tripulação vai preparar seus aposentos. Querem comer enquanto esperam?
Olhei para a mesa cheia de comida e percebi que estava com muita fome. Não comia desde o lanche no Monumento a Washington.
— Sim, hum, obrigado, LSS.
O capitão se curvou novamente, o que o fez parecer uma guilhotina. Depois, ele se retirou e nos deixou com a refeição.
No início, eu estava ocupado demais comendo, por isso não falava. Devorei um sanduíche de rosbife, dois pedaços de torta de cereja com sorvete, e três cálices deginger ale antes de, finalmente, parar para respirar.
Sadie não comeu tanto. Tinha almoçado no avião. Comeu um sanduíche de queijo com pepino e tomou uma daquelas bebidas inglesas de que gosta, um Ribena. Khufu escolheu cuidadosamente tudo que terminava com o – Doritos, Oreos e alguns pedaços de carne. Búfalo? Carneiro? Eu nem queria pensar.
As bolas de fogo flutuavam atenciosas pela sala, enchendo nossos cálices e tirando os pratos quando terminávamos de comer.
Depois de tantos dias apenas lutando para sobreviver, era bom poder sentar à mesa, fazer uma boa refeição e relaxar. O capitão informou que poderia nos levar imediatamente ao Mundo dos Mortos, e essa foi a melhor notícia que eu recebia em um bom tempo.
— Agh!
Khufu limpou a boca e agarrou uma das bolas de fogo. Ele deu às chamas a forma de uma bola de basquete e fez uma careta para mim.
Pela primeira vez, tive certeza do que ele queria dizer em babuíno. Não era um convite. Significava algo como: Agora vou jogar basquete sozinho. Não vou convidar você, porque sua falta de habilidade vai me fazer vomitar.
— Tudo bem, cara — respondi, embora sentisse o rosto arder de vergonha. — Divirta-se.
Khufu bufou, depois pulou da cadeira com a bola de basquete embaixo do braço. Talvez ele encontrasse uma quadra em algum lugar a bordo.
Na ponta da mesa, Bastet empurrou o prato quase intocado de Friskies de atum.
— Sem apetite? — perguntei.
— Hum? Ah, acho que sim.
Ela girava o cálice sem muito interesse. Sua expressão não era muito comum em gatos: culpa.
Sadie e eu nos entreolhamos. Travamos uma conversa breve e silenciosa, mais ou menos assim:
Pergunte você.
Não, você.
Sadie é muito melhor na arte de lançar olhares ameaçadores, por isso perdi a disputa.
— Bastet? — comecei. — O que o capitão queria que você nos dissesse?
Ela hesitou.
— Ah, aquilo? Não deviam ficar ouvindo demônios. Lâmina Suja de Sangue é obrigado a servir pela força da magia, mas, se um dia se libertar, vai usar aquele machado em todos nós, acreditem em mim.
— Está mudando de assunto — acusei-a.
Bastet deslizou um dedo pela beirada da mesa, desenhando hieróglifos na condensação deixada pelo cálice.
— A verdade? Não subo a bordo desde a noite em que sua mãe morreu. Seus pais haviam atracado no Tâmisa. Depois do... acidente, seu pai me trouxe para cá. E foi aqui que selamos nosso acordo.
Ali, naquela mesa. Sim, era isso o que ela dizia. Meu pai tinha se sentado ali, desesperado depois da morte de mamãe... sem ninguém para consolá-lo, exceto a deusa gata, um demônio-machado e um bando de luzes flutuantes.
Estudei o rosto de Bastet na penumbra. Pensei no desenho que tínhamos encontrado em Graceland. Mesmo na forma humana, Bastet ainda era muito parecida com aquele gato – um gato desenhado por um artista milhares de anos atrás.
— Não era só um monstro do caos, era? — perguntei.
Bastet olhou para mim.
— O que quer dizer?
— A coisa contra a qual você estava lutando quando nossos pais a libertaram do obelisco. Não era só um monstro do caos. Você lutava contra Apófis.
A intensidade das luzes diminuiu. Uma das bolas de fogo derrubou um prato e tremulou nervosa.
— Não mencione o nome da Serpente — Bastet me repreendeu. — Especialmente quando nos encaminhamos para a noite. A noite é o reino dele.
— É verdade, então — concluiu Sadie, balançando a cabeça com desânimo. — Por que não disse nada? Por que mentiu?
Bastet baixou os olhos. Sentada na penumbra, ela parecia frágil e cansada. Seu rosto era marcado por muitas cicatrizes de velhas batalhas.
— Eu era o Olho de Rá — disse ela, em voz baixa. — A defensora do deus sol, o instrumento de sua vontade. Tem ideia de quanto isso era honroso?
Ela estendeu as garras e as estudou.
— Quando as pessoas veem imagens do gato guerreiro de Rá, presumem ser Sekhmet, a leoa. E ela foi sua primeira defensora, é verdade. Mas era muito violenta, descontrolada. Sekhmet acabou sendo forçada a abdicar do posto, e Rá me escolheu para ser sua guerreira: eu, a pequena Bastet.
— Por que fala como se estivesse envergonhada? — Sadie quis saber. — Você disse que era uma honra.
— No início, fiquei orgulhosa. Lutei contra a Serpente por eras. Gatos e cobras são inimigos mortais. Fiz meu trabalho com muita competência. Mas, depois, Rá se retirou para o céu. Com seu último encantamento, me prendeu à Serpente. Ele nos lançou naquele abismo, onde fui encarregada de mantê-la presa para sempre.
De repente, percebi algo importante.
— Você não era uma prisioneira qualquer. Você nunca foi uma prisioneira sem importância. Ficou presa por mais tempo que a maioria dos deuses.
Ela fechou os olhos.
— Ainda lembro as palavras de Rá: “Minha gata leal. Esse é seu maior dever.” E me orgulhei disso... por séculos. E milênios. Podem imaginar como era? Lâminas contra presas, rasgando e lutando, uma guerra infinita na escuridão. Fomos enfraquecendo, perdendo a força vital, minha inimiga e eu, e comecei a perceber que este era o plano de Rá. Nós nos destruiríamos, nós nos reduziríamos a nada, e o mundo ficaria seguro. Só assim Rá poderia se retirar em paz, sabendo que o caos não se imporia ao Maat. E eu teria cumprido meu dever. Não tinha escolha. Até seus pais...
— Oferecerem uma possibilidade de fuga — deduzi. — E você a aceitou.
Bastet me olhou desolada.
— Sou a rainha dos gatos. Tenho muitas habilidades. Mas, para ser honesta, Carter... os gatos não são muito corajosos.
— E Ap... o inimigo?
— Ficou preso no abismo. Seu pai e eu nos certificamos disso. A Serpente já estava bem enfraquecida por eras de luta, e quando sua mãe usou a força da própria vida para fechar o abismo, bem... Ela realizou uma magia poderosa. Não é possível a Serpente romper aquele tipo de lacre. Mas, com o passar dos anos... bem, nós fomos perdendo a certeza de que a prisão seria suficiente para reter o inimigo. Se ele conseguisse escapar e recuperar sua força, nem imagino o que poderia acontecer. E a culpa seria minha.
Tentei imaginar a serpente, Apófis – uma criatura do caos ainda pior que Set. Imaginei Bastet com suas lâminas, presa em um combate de milênios contra aquele monstro. Talvez eu devesse ficar furioso por Bastet não nos ter contado a verdade antes. Mas, em vez disso, sentia pena dela. Bastet tinha sido posta na mesma posição em que estávamos: forçada a cumprir uma missão que era grandiosa demais para ela.
— Então, por que meus pais a libertaram? — perguntei. — Eles contaram?
Ela assentiu devagar.
— Eu estava perdendo a briga. Seu pai me disse que sua mãe havia previsto... coisas horríveis, se a Serpente me derrotasse. Eles precisavam me libertar, dar tempo para que eu me recuperasse. Disseram que esse era o primeiro passo para a restauração dos deuses. Não tenho a pretensão de entender o plano completo. Fiquei aliviada com a oferta de seu pai e então a aceitei, é claro. E me convenci de que fazia o que era certo pelos deuses. Mas isso não muda o fato de que fui covarde. Deixei de cumprir meu dever.
— Não é sua culpa — eu disse a ela. — Não foi justo o que Rá exigiu de você.
— Carter tem razão — opinou Sadie. — Era um sacrifício grande demais para uma pessoa só... ou uma deusa gata, no seu caso.
— Era a vontade de meu rei — retrucou Bastet. — O faraó pode comandar seus súditos pelo bem do reino, pode exigir até que sacrifiquem a vida, e eles devem obedecer. Hórus sabe disso. Ele foi faraó muitas vezes.
É verdade, Hórus falou.
— Então você tinha um rei estúpido — concluí.
O barco tremeu como se uma das rodas tivesse se chocado contra um banco de areia.
— Cuidado, Carter — Bastet me repreendeu. — O Maat, a ordem da Criação, depende da lealdade ao rei certo. Se você a questiona, pode sofrer a influência do caos.
Eu me sentia frustrado, com vontade de quebrar alguma coisa. Queria gritar que a ordem nem parecia ser muito melhor que o caos, se você precisava se matar por ela.
Está sendo infantil, Hórus me censurou. Você é um servo do Maat. Esses pensamentos são inadequados.
Meus olhos ardiam.
— Talvez então eu seja inadequado.
— Carter? — Sadie estranhou.
— Não é nada — respondi. — Vou me deitar.
Saí da sala sem olhar para trás. Uma das luzes me seguiu, guiando-me até minha cabine no andar de cima.
Devia ser um espaço bem legal. Não prestei atenção. Só me joguei na cama e apaguei.
Eu precisava muito de um travesseiro mágico extraforte, porque meu ba não parava quieto. [Não, Sadie, não acho que enrolar minha cabeça com fita isolante pudesse ajudar.]
Meu espírito flutuou até a cabine de comando do barco a vapor, mas não era Lâmina Suja de Sangue que estava ao leme. Um jovem com armadura de couro comandava a embarcação. Seus olhos estavam delineados com kohl e sua cabeça era calva, exceto por uma trança na parte de trás. O cara se exercitava muito, com certeza, porque seus braços eram definidos. Uma espada como a minha estava presa a sua cintura.
— O rio é traiçoeiro — ele me disse com uma voz familiar. — O piloto não pode se distrair. Precisa estar sempre alerta para os bancos de areia e outros perigos ocultos. Por isso os barcos têm meus olhos pintados neles. Para que os perigos sejam vistos.
— Olhos de Hórus — deduzi. — Você.
O deus falcão olhou para mim e vi que seus olhos eram de cores diferentes – um deles amarelo-ouro como o sol, o outro prateado como a lua. O efeito era tão desorientador que tive de desviar o olhar. E quando fiz isso, notei que a sombra de Hórus não era igual à sua forma. No piso da cabine havia o contorno de um falcão gigantesco.
— Você está se perguntando se a ordem é melhor que o caos — afirmou ele. — E se distrai de nosso verdadeiro inimigo: Set. Devia levar uma boa lição.
Eu estava preste a dizer: Não, de verdade, já entendi.
Mas, antes que eu pudesse falar, meu ba foi levado para longe. De repente, eu estava em um avião – uma aeronave grande, de viagens internacionais, como as que meu pai e eu havíamos tomado milhões de vezes. Zia Rashes, Desjardins e dois outros magos viajavam espremidos em uma fileira do meio, cercados por famílias com crianças berrando. Zia não parecia se incomodar. Ela meditava serenamente, de olhos fechados, enquanto Desjardins e os outros dois homens pareciam tão desconfortáveis que eu quase senti vontade de rir.
O avião sacudiu. Desjardins derrubou vinho na roupa. O aviso de apertar os cintos piscou e uma voz soou no sistema de som:
— Aqui é o capitão. Parece que vamos enfrentar pequena turbulência no pouso em Dallas, por isso vou pedir aos comissários de bordo...
Bum! Um estrondo sacudiu as janelas. Um relâmpago seguido imediatamente pelo trovão.
Zia abriu os olhos.
— O Lorde Vermelho.
Os passageiros gritaram quando o avião despencou várias centenas de metros.
— Il commence! — Desjardins gritou no meio da confusão. — Depressa!
O avião sacudia, os passageiros gritavam e se agarravam aos assentos. Desjardins se levantou e abriu o bagageiro.
— Senhor! — gritou uma comissária. — Senhor, sente-se!
Desjardins a ignorou. Ele pegou quatro bolsas familiares – kits de ferramentas mágicas – e as distribuiu entre os colegas.
Então, as coisas realmente desandaram. Um horrível baque sacudiu a cabine e o avião se inclinou para o lado. Pelas janelas à direita, vi a asa ser arrancada do lado de fora por uma rajada de vento de uns 700 km/h. O interior da aeronave mergulhou no caos, com bebidas, livros e sapatos voando em todas as direções, máscaras de oxigênio caindo e se enroscando, pessoas gritando.
— Protejam os inocentes! — ordenou Desjardins.
O avião começou a tremer e rachaduras apareceram nas janelas e na fuselagem. Os passageiros mergulharam no silêncio, na inconsciência provocada pela despressurização repentina. Os quatro magos ergueram suas varinhas quando o avião se partiu em pedaços.
Por um momento, os magos flutuaram num redemoinho de nuvens de tempestade, pedaços de fuselagem, bagagens e passageiros ainda presos aos assentos. Depois, um brilho branco os cercou, uma bolha de energia que desacelerou o desmantelamento do avião e manteve os pedaços orbitando dentro de si. Desjardins estendeu a mão e uma nuvem se prolongou na direção dele, um tentáculo de algodão branco, como uma linha de proteção.
Os outros magos fizeram o mesmo, e a tempestade cedeu à vontade deles. O vapor branco os envolveu, e mais tentáculos, como se fossem nuvens em forma de funil, iam resgatando pedaços do avião e os unindo.
Uma criança despencou ao lado de Zia. Ela apontou seu cajado e recitou um encantamento. Uma nuvem envolveu a garotinha e a levou de volta. Logo os quatro magos construíram o avião em torno deles, selando as fendas com teias de nuvem até que toda a cabine estivesse cercada por um casulo de vapor. Do lado de fora, a tempestade continuava e os trovões se sucediam, mas os passageiros dormiam tranquilos em seus assentos.
— Zia! — gritou Desjardins. — Não conseguiremos manter isso por muito tempo.
Zia passou correndo por ele a caminho do painel de comando. A frente do avião, de alguma forma, sobrevivera intacta à explosão. A entrada estava fechada, mas o cajado de Zia brilhou e a porta derreteu como cera.
Ela entrou na cabine e encontrou os três pilotos inconscientes. A imagem na janela foi o suficiente para me dar enjoo. Através das nuvens em movimento, o chão se aproximava depressa, muito depressa.
Zia bateu com o cajado no painel de controle. Uma energia vermelha percorreu os mostradores. Ponteiros giraram, medidores piscaram e o altímetro se estabilizou. O nariz do avião subiu, a velocidade foi reduzida. Vi Zia conduzir o avião para um pasto e aterrissar sem solavanco algum. Depois, seus olhos se reviraram nas órbitas e ela caiu.
Desjardins a encontrou e a pegou nos braços.
— Depressa — disse aos colegas — logo os mortais vão acordar.
Ele levou Zia para fora da cabine de comando, e meu ba foi arrastado por uma confusão de imagens.
Vi Phoenix novamente – ou pelo menos alguma parte da cidade. Uma violenta tempestade de areia vermelha varria o vale, engolindo prédios e montanhas. O vento forte e quente carregava as gargalhadas de Set, revelando seu poder.
Eu vi o Brooklyn: a casa de Amós no rio East destruída e uma tempestade de inverno castigando a área, cobrindo tudo de gelo e provocando inundações. Depois, vi um lugar que eu não reconhecia: um rio cortando um cânion no deserto. O céu era um manto de nuvens negras e a superfície do rio parecia borbulhar. Algo se movia sob a água, algo grande, mau e poderoso – e eu sabia que aquilo esperava por mim.
Isso é só o começo, Hórus me avisou. Set vai destruir todos de quem você gosta. Acredite em mim, eu sei.
O rio se tornou um pântano de juncos altos. O sol ardia no céu. Cobras e crocodilos deslizavam pela água. Na margem havia um casebre de telhado de sapê. Do lado de fora, uma mulher e uma criança de uns dez anos examinavam um sarcófago em péssimas condições. Era possível ver que o esquife já tinha sido uma obra de arte – com ouro e pedras preciosas – mas agora estava rachado e coberto de sujeira.
A mulher deslizou as mãos pela tampa do caixão.
— Finalmente.
O rosto era o de minha mãe: olhos azuis e cabelos cor de caramelo, mas brilhava com uma aura mágica, e eu soube que estava olhando para a deusa Ísis.
Ela olhou para o menino.
— Procuramos por tanto tempo, meu filho. Finalmente o recuperamos. Vou usar minha magia para devolver a vida a ele!
— Papai? — O menino olhava perplexo para o caixão. — Ele está mesmo aí dentro?
— Sim, Hórus. E agora...
De repente, o casebre explodiu em chamas. O deus Set surgiu do inferno – um poderoso guerreiro de pele vermelha com olhos negros penetrantes. Ele usava a coroa dupla do Egito e as vestes de um faraó. Nas mãos dele, fumegava um cajado de ferro.
— Encontrou o caixão, não é? Que bom para você — disse ele.
Ísis ergueu as mãos para o céu. Ela invocou os raios contra o deus do caos, mas o cajado de Set absorveu o impacto e o devolveu. Arcos de eletricidade atingiram a deusa, que caiu.
— Mãe! — O menino sacou uma faca e investiu contra Set. — Vou matar você!
Set gargalhou. Ele se esquivou com grande facilidade, chutou o garoto com violência e derrubou-o no chão de terra.
— Você é corajoso, sobrinho — admitiu Set. — Mas não vai viver o bastante para me desafiar. Quanto a seu pai, preciso me livrar dele em caráter mais... permanente.
Set bateu com o cajado na tampa do caixão.
Ísis gritou ao ver o caixão rachar como gelo.
— Faça um pedido. — Set soprou, e os fragmentos do caixão voaram para o céu, espalhando-se em todas as direções. — Pobre Osíris, despedaçado, espalhado por todo o Egito. E quanto a você, irmã Ísis... fuja! Isso é o que você faz melhor!
Set deu um passo à frente. Ísis segurou a mão do filho e eles se transformaram em aves e voaram para longe dali.
A cena desapareceu e eu voltei ao barco. O sol se erguia rapidamente enquanto cidades e embarcações passavam depressa, e a margem do rio Mississippi era uma confusão de luz e sombras.
— Ele destruiu meu pai — Hórus me contou. — E vai fazer o mesmo com o seu.
— Não — eu disse.
Hórus cravou em mim aqueles olhos estranhos – um dourado, outro prateado.
— Minha mãe e tia Néftis passaram anos procurando os pedaços do caixão e do corpo de meu pai. Quando conseguiram reunir todos eles, meu primo Anúbis ajudou a reconstituir meu pai com faixas de múmia, mas a magia de minha mãe não conseguia trazê-lo de volta à vida. Não como deveria. Osíris se tornou um deus morto-vivo, uma sombra de meu pai, alguém que só poderia governar no Duat. Mas perdê-lo me encheu de ira. A ira me deu força para derrotar Set e tomar o trono. Você deve fazer o mesmo.
— Não quero um trono — retruquei. — Quero meu pai.
— Não se engane. Set só está brincando com você. Ele o levará ao desespero, e o sofrimento vai enfraquecer você.
— Preciso salvar meu pai!
— Essa não é sua missão — censurou-me Hórus. — O mundo está correndo risco. Agora, acorde!
Sadie sacudia meu braço. Ela e Bastet estavam debruçadas sobre mim e pareciam preocupadas.
— O que é? — perguntei.
— Chegamos — anunciou Sadie, nervosa.
Ela trocara de roupa, e agora vestia um traje de linho limpo, preto, combinando com os coturnos. Conseguira tingir os cabelos, e as mechas ficaram azuis.
Eu me sentei e percebi que estava descansado pela primeira vez em uma semana. Minha alma podia ter viajado, mas meu corpo havia dormido muito. Olhei pela janela do barco. Lá fora, a escuridão era total.
— Por quanto tempo eu dormi? — perguntei.
— Viajamos por boa parte do Mississippi e entramos no Duat — respondeu Bastet. — Agora estamos nos aproximando da Primeira Catarata.
— Primeira Catarata? — repeti.
— A entrada — respondeu Bastet, séria — do Mundo dos Mortos.

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