segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 40 - Eu arruino um feitiço importante

DESCOBRI QUE AS COISAS NÃO IAM TÃO BEM LÁ EM CIMA.
Carter era um montinho embolado de guerreiro galinha na parede da pirâmide. Set acabara de encaixar o piramidião e gritava:
— Trinta segundos para o amanhecer!
Na caverna lá embaixo, os magos da Casa da Vida estavam cercados por um exército de demônios, em uma luta já perdida. A cena já teria sido suficientemente assustadora, mas agora eu a enxergava como Ísis. Como um crocodilo com os olhos na altura da linha d’água – enxergando tanto acima quanto abaixo da superfície. Vi o Duat entrelaçado com o mundo superior.
Embaixo, os demônios tinham alma de fogo, por isso pareciam um exército de velas de aniversário. Onde Carter estava, no mundo mortal, havia um falcão guerreiro no Duat – não um avatar, mas o real, com cabeça de penas, um bico pontiagudo, sujo de sangue, e olhos negros e brilhantes. Sua espada brilhava com uma luz dourada. Quanto a Set... Imagine uma montanha de areia, encharcada de petróleo, incendiada, girando no maior liquidificador do mundo. Era assim que ele parecia no Duat: uma coluna de força destrutiva tão poderosa, que as pedras a seus pés ferviam e borbulhavam.
Não sei qual era minha aparência, mas me sentia poderosa. A força do Maat me inundava, as Palavras Divinas estavam a meu dispor. Eu era Sadie Kane, sangue dos faraós. E eu era Ísis, deusa da magia, guardiã dos nomes secretos.
Enquanto Carter escalava a pirâmide com dificuldade, Set anunciou:
— Não pode me deter sozinho, Hórus, especialmente no deserto, de onde vem minha força!
— Tem razão! — gritei.
Set virou-se, e ver sua expressão não tinha preço. Levantei meu cajado e a varinha, reunindo todo o meu poder mágico.
— Mas Hórus não está sozinho — anunciei. — E não vamos lutar no deserto.
Bati o cajado nas pedras do chão.
— Washington, D.C.! — gritei.
A pirâmide sacudiu. Por um momento, nada mais aconteceu.
Set pareceu perceber o que eu estava fazendo. Ele soltou um riso nervoso.
— Magia inútil, Sadie Kane. Não pode abrir um portal durante os Dias do Demônio!
— Um mortal não pode — concordei. — Mas uma deusa da magia, sim.
Acima de nós, o ar estalou com um raio de luz. O alto da caverna se transformou em um funil de areia tão grande quanto a pirâmide.
Os demônios pararam de lutar e olharam para cima, horrorizados. Os magos se interromperam no meio de encantamentos, absolutamente perplexos.
O funil girava com tanta força, que arrancava blocos da pirâmide e os sugava junto à areia. E então, como um tampão gigantesco, o portal começou a descer.
— Não! — Set urrou.
Ele lançou chamas contra o portal, depois se voltou contra mim com pedras e raios, mas era tarde demais. O portal já nos engolia.
O mundo virou de cabeça para baixo. Por um instante, imaginei se não teria cometido um terrível erro de cálculo – se a pirâmide de Set explodiria no portal, se eu passaria a eternidade flutuando no Duat, como um bilhão de pequeninas partículas de areia de Sadie. Então, com um estrondo fabuloso, surgimos no ar frio da manhã, com um céu claro e azul acima de nós. Espalhados lá embaixo eu vi os campos nevados do National Mall, em Washington.
A pirâmide vermelha ainda estava intacta, mas havia rachaduras na superfície. O piramidião dourado cintilava, tentando manter a magia, mas não estávamos mais em Phoenix. A pirâmide tinha sido arrancada de sua fonte de poder, o deserto, e diante de nós estava o portal padrão para a América do Norte, o obelisco alto e branco que era o mais poderoso ponto focal do Maat no continente: o Monumento a Washington.
Set gritou alguma frase para mim em egípcio antigo. Tive certeza de que não era um elogio.
— Vou arrancar seus membros do corpo! — gritou ele. — Eu vou...!
— Morrer? — sugeriu Carter.
Meu irmão se ergueu atrás de Set com a espada em punho. A lâmina atingiu a armadura do deus na altura das costelas – não com um golpe mortal, mas o suficiente para desequilibrá-lo e jogá-lo pirâmide abaixo. Carter correu atrás dele e, no Duat, vi arcos de energia branca que pulsavam em ondas saírem do Monumento a Washington e irem na direção do avatar de Hórus, carregando-o de força.
— O livro, Sadie! — Carter gritou enquanto corria. — Agora!
Eu devia estar atordoada por ter invocado o portal, porque Set entendeu o que Carter dizia muito mais depressa que eu.
— Não! — gritou o Deus Vermelho.
Set correu em minha direção, mas Carter o interceptou quando ele já tinha subido metade da pirâmide. Carter se atracou com Set, contendo-o. As pedras da pirâmide estalavam e esfarelavam sob o peso de suas formas divinas. Em torno da base, demônios e magos que haviam sido sugados pelo portal começavam a recuperar a consciência.
O livro, Sadie... Às vezes, é útil ter mais alguém dentro de sua cabeça, porque uma pessoa pode “acordar” a outra. O livro!
Estendi a mão e invoquei o pequeno volume azul que tínhamos roubado em Paris: o livro para derrotar Set. Desdobrei o papiro: os hieróglifos estavam nítidos como letras no quadro-negro de uma pré-escola. Conjurei a pena de sua verdade e ela surgiu no mesmo instante, brilhando sobre as páginas.
Comecei o encantamento, pronunciando as Palavras Divinas, e meu corpo se ergueu no ar, pairando alguns centímetros acima da pirâmide. Entoei a história da criação: a primeira montanha se erguendo sobre as águas do caos, o nascimento dos deuses Rá, Geb e Nut, o surgimento do Maat e do primeiro grande império dos homens, o Egito.
O Monumento a Washington começou a brilhar com hieróglifos surgindo em suas paredes. O cume cintilou prateado.
Set tentou me atacar, mas Carter o interceptou. E a pirâmide vermelha começou a desmoronar.
Pensei em Amós e em Zia, soterrados por toneladas de pedras, e quase fraquejei, mas a voz de minha mãe soava em minha cabeça: Continue concentrada, meu bem. Preste atenção a seu inimigo.
Sim, concordou Ísis. Destrua-o!
Mas, de algum jeito, eu sabia que não era isso que minha mãe queria dizer. Ela me avisava que ficasse atenta, que observasse. Algo importante ia acontecer.
No Duat, vi a magia se formando à minha volta, criando um manto branco sobre o mundo, dando forças ao Maat e expulsando o caos. Carter e Set lutavam, movendo-se para a frente e para trás enquanto enormes fragmentos da pirâmide despencavam.
A pena da verdade brilhava, criando uma espécie de holofote que iluminava o Deus Vermelho. Conforme me aproximava do final do encantamento, minhas palavras começaram a rasgar a forma de Set em tiras.
No Duat, seu furacão de fogo se apagava, revelando uma forma de pele preta, muito magra, como um animal Set extenuado – a essência maléfica do deus. Mas, no mundo mortal, ocupando o mesmo espaço, havia um guerreiro orgulhoso em uma armadura vermelha, fulgurante em sua força e decidido a lutar até a morte.
— Eu o nomeio, Set — recitei. — Eu o nomeio Dia do Mal.
Com um estrondo furioso, a pirâmide implodiu. Set caiu com as ruínas. Tentou se erguer, mas Carter usou a espada. Set mal teve tempo de levantar o cajado. As armas se cruzaram, e Hórus forçou lentamente o inimigo, Set, a se ajoelhar.
— Agora, Sadie! — Carter gritou.
— Você tem sido meu inimigo — entoei — e uma praga na terra.
Uma linha de luz branca percorreu toda a altura do Monumento a Washington e se alargou, formando uma fenda – um portal entre este mundo e o brilhante abismo branco onde Set seria trancafiado, onde sua força vital ficaria contida. Talvez não para sempre, mas por muito, muito tempo.
Para completar o encantamento, eu só precisava dizer mais uma frase: “Por não merecer misericórdia, inimigo do Maat, você está exilado além da terra.”
A frase devia ser recitada com absoluta convicção. A pena da verdade assim exigia. E por que eu não acreditaria naquilo? Era a verdade. Set não merecia misericórdia. Eleera um inimigo do Maat. Mas eu hesitei.
“Preste atenção a seu inimigo”, minha mãe tinha dito.
Olhei para o topo do monumento e, no Duat, vi fragmentos da pirâmide voando para o céu, as almas dos demônios ascendendo como fogos de artifício. Com a dispersão da magia do caos de Set, toda a força que tinha sido reunida, preparada para destruir um continente, era sugada pelas nuvens. E vi o caos tentando tomar forma.
Era como um reflexo vermelho do Potomac: um enorme rio carmim, de pelo menos um quilômetro e meio de comprimento e centenas de metros de largura. Serpenteava no ar, tentando se tornar sólido, e eu sentia sua fúria e sua amargura. Não era aquilo o desejado. Não havia força do caos suficiente para o seu propósito. Para se formar da maneira apropriada, seria necessário provocar milhões de mortes, a destruição de um continente inteiro.
Não era um rio. Era uma cobra.
— Sadie! — Carter gritou. — O que está esperando?
Ele não conseguia ver o que eu via, notei. Ninguém conseguia. Só eu.
Set estava de joelhos, retorcendo-se e praguejando enquanto a energia branca o envolvia, puxando-o para a fenda.
— Perdeu a coragem, bruxa? — gritou ele. Depois, olhou para Carter. — Está vendo, Hórus? Ísis sempre foi covarde. Ela nunca conseguiu concluir a tarefa!
Carter olhou para mim, e por um momento vi dúvida em seu rosto. Hórus o instigava a uma vingança sangrenta. E eu estava hesitando. Isso havia jogado Hórus e Ísis um contra o outro antes. Eu não podia deixar que acontecesse de novo.
Mais que isso: na expressão cansada de Carter, enxerguei-o novamente como nos dias em que ia me visitar – quando éramos praticamente estranhos, forçados a ficar juntos, fingindo ser uma família feliz porque papai esperava isso de nós. Eu não queria aquilo de novo. Não voltaria a fingir. Nós éramos uma família e precisávamos agir juntos.
— Carter, veja! — Joguei a pena da verdade para o céu, quebrando o encanto.
— Não! — Carter gritou.
Mas a pena explodiu numa poeira prateada que se aderiu ao corpo de uma serpente, forçando-a a se tornar visível, mesmo que só por um instante.
Carter observou, boquiaberto, a serpente se retorcendo no ar, acima do Monumento a Washington, perdendo força lentamente.
Do meu lado, uma voz gritou.
— Malditos deuses!
Eu me virei e vi o seguidor de Set, Rosto do Terror, mostrando as presas, seu rosto grotesco bem perto de mim, com uma faca denteada erguida sobre minha cabeça. Só tive tempo de pensar: estou mortaaté que vi com o canto do olho o brilho do metal. Escutei um baque pavoroso e o demônio parou, como se congelasse.
Carter tinha arremessado sua espada com precisão mortal. O demônio derrubou a faca, caiu de joelhos, e olhou a espada enterrada em seu corpo.
Ele tombou de costas, exalando seu último suspiro furioso. Os olhos negros fixaram-se em mim, e ele falou com uma voz completamente diferente – um som seco e áspero, como o de um réptil rastejando na areia.
— Não acabou, deusa menor. E digo isso com um mero fio de minha voz, enquanto minha essência escapa deste receptáculo enfraquecido. Imagine o que farei quando tiver uma forma completa.
Lançou-me um sorriso medonho, depois seu rosto ficou imóvel. Uma linha fina de névoa vermelha escapou de sua boca – como um verme ou uma cobra recém-saída do ovo – e subiu sinuosa para o céu, a fim de se reunir a sua origem. O corpo do demônio desintegrou-se em areia.
Olhei mais uma vez para a serpente vermelha gigantesca que se dissipava lentamente. Depois, invoquei um vento forte e a dispersei de vez.
O Monumento a Washington parou de brilhar. A fenda se fechou e o livro de encantamentos desapareceu de minha mão.
Fui na direção de Set, que ainda estava envolto em fios de energia branca. Eu tinha pronunciado seu verdadeiro nome. Ele não iria a lugar algum tão cedo.
— Vocês dois viram a serpente nas nuvens — falei. — Apófis.
Carter assentiu, atordoado.
— Apófis tentava invadir o mundo mortal, usando como portal a Pirâmide Vermelha. Se seu poder fosse desencadeado... — Ele olhou com repugnância para o monte de areia que havia sido um demônio. — O ajudante de Set, Rosto do Terror... Ele sempre esteve possuído por Apófis, e usava Set para conseguir o que queria.
— Ridículo! — Set me olhou, furioso, contorcendo-se nas amarras. — A serpente no céu era só um de seus truques, Ísis. Uma ilusão.
— Você sabe que não — respondi. — Eu poderia tê-lo enviado para o abismo, Set, mas você viu nosso real inimigo. Apófis tentava sair de sua prisão no Duat. Sua voz possuiu Rosto do Terror. Ele o estava usando.
— Ninguém me usa!
Carter dispersou sua forma de guerreiro. Ele flutuou até o chão e evocou de volta sua espada.
— Apófis queria alimentar o próprio poder com sua explosão, Set. Assim que ele viesse pelo Duat e nos encontrasse mortos, aposto que você teria sido a primeira refeição dele. O caos teria vencido.
— Eu sou o caos! — insistiu Set.
— Parcialmente — retruquei. — Mas ainda é um dos deuses. Sim, você é mau, implacável, cruel, sem fé, vil...
— Vai me fazer corar, irmã.
— Mas também é o deus mais poderoso. Nos velhos tempos, foi o fiel escudeiro de Rá, defendendo o barco dele contra Apófis. Rá não poderia ter derrotado a serpente sem você.
— Sou poderoso — admitiu Set. — Mas Rá se foi para sempre, graças a você.
— Talvez não para sempre. Precisamos encontrá-lo. Apófis está se recuperando, o que significa que precisamos de todos os deuses para enfrentá-lo. Até de você.
Set testou as amarras de energia branca. Quando descobriu que não podia rompê-las, sorriu para mim de um jeito frio.
— Está sugerindo uma aliança? Confiaria em mim?
Carter riu.
— Você deve estar brincando. Mas, de qualquer forma, conhecemos sua essência. Seu nome secreto. Não é isso, Sadie?
Fechei os dedos, e as amarras se apertaram em torno de Set. Ele gritou de dor. Era necessária uma grande dose de energia, e eu sabia que não poderia contê-lo assim por muito tempo, mas Set não precisava saber.
— A Casa da Vida tentou banir os deuses — falei. — Não funcionou. Se o exilássemos, não estaríamos fazendo melhor que eles. Isso não resolve nada.
— Tem toda razão — rosnou Set. — Assim, se puder soltar as amarras...
— Você ainda é cruel e vil — continuei. — Mas tem um papel a desempenhar, e vai precisar de controle. Aceito soltá-lo, se prometer que vai se comportar, que vai voltar ao Duat e que não causará problemas até que o chamemos de volta. E, mesmo quando for chamado, vai lutar somente contra Apófis.
— Ou eu corto sua cabeça — sugeriu Carter. — E assim o mantenho longe de tudo por um bom tempo.
Set olhou para nós dois.
— Querem que eu lute ao lado de vocês, não é? Bem, lutar é minha especialidade.
— Jure por seu nome e pelo trono de Rá — exigi. — Vai partir agora e não voltará senão quando for chamado.
— Ah, eu juro — respondeu ele, depressa demais. — Por meu nome, pelo trono de Rá e pelas estrelas de nossa mãe.
— Se nos trair — avisei — eu tenho seu nome. Não terei misericórdia em uma segunda vez.
— Você sempre foi minha irmã favorita.
Apertei as amarras pela última vez, provocando um choque elétrico só para lembrá-lo de meu poder, depois deixei as amarras se dissolverem.
Set se levantou e mexeu os braços. Sua aparência agora era a de um guerreiro de pele e armadura vermelhas, com uma barba preta bifurcada e olhos cruéis e brilhantes. Mas, no Duat, eu via seu outro lado, um inferno de fogo contido com grande esforço, esperando para ser libertado e queimar tudo pelo caminho. Ele piscou para Hórus, depois fingiu atirar contra mim, com o dedo imitando uma arma.
— Ah, isso vai ser bom. Vamos nos divertir muito.
— Vá, Dia do Mal — eu disse.
Ele se transformou num pilar de sal e se dissipou.
A neve no National Mall derretera, formando um quadrado perfeito, do tamanho exato da pirâmide de Set. Em volta, dez ou doze magos ainda estavam caídos, desmaiados. Os pobrezinhos tinham começado a se levantar quando o portal se fechou, mas a explosão da pirâmide os nocauteou novamente. Outros mortais por ali também haviam sido atingidos. Um esportista que aproveitava o início da manhã para correr estava caído na calçada.
Nas ruas próximas, carros parados abrigavam motoristas que pareciam cochilar na direção. Mas nem todo mundo estava desacordado. Sirenes de polícia soavam a distância, e, como estávamos praticamente no quintal do presidente, eu sabia que logo teríamos companhia fortemente armada.
Carter e eu corremos para o centro do quadrado de neve derretida, onde Amós e Zia estavam desfalecidos na grama. Não havia sinal do trono de Set ou do caixão dourado, mas tentei banir da mente esses pensamentos.
Amós gemeu.
— O que... — Seus olhos foram invadidos pelo terror. — Set... ele... ele...
— Descanse.
Toquei a testa dele, que queimava de febre. A dor em sua mente era tão aguda que me cortava como uma lâmina. Lembrei um feitiço que Ísis havia me ensinado no Novo México.
— Quieto — sussurrei. — Hah-ri.
Hieróglifos brilharam discretamente no rosto dele. Amós voltou a dormir, mas eu sabia que a solução era temporária.
Zia estava ainda pior. Carter amparou a cabeça dela e prometeu que tudo ficaria bem, mas a menina parecia realmente mal. A pele tinha um avermelhado estranho, estava seca e áspera, como se tivesse sofrido uma terrível queimadura de sol. Na grama em torno dela, alguns hieróglifos desapareciam – restos de um círculo protetor – e vi que entendia o que havia acontecido. Ela usara a pouca energia que lhe restava para se proteger e a Amós quando a pirâmide implodiu.
— Set? — perguntou ela, com a voz fraca. — Ele já foi?
— Sim. — Carter olhou para mim, e eu soube que os detalhes ficariam só entre nós. — Está tudo bem, graças a você. O nome secreto funcionou.
Ela assentiu, satisfeita, e seus olhos começaram a se fechar.
— Ei. — A voz de Carter falhou. — Fique acordada. Não vai me deixar sozinho com Sadie, vai? Ela não é boa companhia.
Zia tentou sorrir, mas o esforço provocou uma dor que ficou estampada em seu rosto.
— Eu nunca... nunca estive aqui, Carter. Era uma mensagem... Apenas um recipiente.
— Pare com isso. Que jeito de falar!
— Encontre-a, está bem? — Zia pediu. Uma lágrima escorreu de seu olho. — Ela iria... gostar... encontro no shopping.
Os olhos dela se desviaram dos dele e fitaram o céu, sem ver mais nada.
— Zia! — Carter agarrou a mão dela. — Pare com isso! Você não pode... Não pode...
Eu me ajoelhei ao lado dele e toquei o rosto de Zia. Estava frio como pedra. E, embora eu entendesse o que tinha acontecido, não conseguia pensar em nada para dizer, nada que pudesse consolar meu irmão. Ele fechou os olhos com força e balançou a cabeça.
E, então, aconteceu. Ao longo do caminho desenhado pela lágrima, do canto do olho até a base do nariz, o rosto de Zia trincou. Surgiram rachaduras menores, que riscavam a pele formando uma teia. A pele secou, endureceu... e se transformou em argila.
— Carter — chamei.
— O que é? — respondeu ele, infeliz.
Meu irmão olhou para cima quando uma luz azul brotou da boca de Zia e subiu ao céu. Ele recuou, assustado.
— O que... o que você fez?
— Nada — respondi. — Ela era um shabti. Disse que não estava realmente aqui. Disse que era só um recipiente.
Carter parecia perplexo. Mas, em seguida, uma luz fraca surgiu em seus olhos, uma pequena centelha de esperança.
— Então... a verdadeira Zia está viva?
— Iskandar a está protegendo — respondi. — Quando o espírito de Néftis juntou-se à verdadeira Zia, em Londres, Iskandar percebeu que ela estava em perigo. Ele a escondeu e a substituiu por um shabti. Lembre-se do que Tot disse, que um shabti é excelente dublê. Era isso. E Néftis me disse que estava abrigada em algum lugar, em uma hospedeira adormecida.
— Mas onde...
— Não sei — respondi.
E no estado em que Carter se encontrava, eu temia fazer a pergunta mais importante: se Zia era um shabti todo aquele tempo, nós realmente a conhecemos? A verdadeira Zia nunca esteve conosco. Nunca soube que incrível pessoa eu era. E nunca gostou de Carter.
Carter tocou o rosto dela, que se desfez em areia. Ele pegou a varinha de Zia, que ainda era de puro marfim, e a segurou hesitante, como se temesse que ela também se desfizesse.
— Aquela luz azul — gaguejou ele — eu vi Zia emiti-la no Primeiro Nomo. Como osshabti em Memphis, eles enviaram seus pensamentos de volta a Tot. Zia devia estar em contato com seu shabti. Era essa a luz. Devia ser como um conjunto de memórias compartilhadas, não? Ela devia saber o que os shabti enfrentavam. Se a verdadeira Zia está viva em algum lugar, pode estar dominada por algum tipo de magia, adormecida ou... Precisamos encontrá-la!
Eu não sabia se seria tão simples, mas não queria discutir. Podia ver o desespero no rosto de meu irmão. Então, uma voz familiar provocou um arrepio gelado que percorreu minhas costas.
— O que vocês fizeram?
Desjardins estava furioso. Suas vestes rasgadas ainda desprendiam a fumaça da batalha.
[Carter está dizendo que não devo mencionar que a cueca cor-de-rosa de Desjardins estava aparecendo, mas estava!]
Seu cajado brilhava e os pelos da barba estavam chamuscados. Atrás dele, vi três magos igualmente rasgados, todos pareciam ter acabado de recobrar a consciência.
— Ah, que bom — murmurei. — Estão vivos.
— Vocês negociaram com Set? — perguntou Desjardins. — Vocês o deixaram escapar?
— Não temos de lhe dar explicações — grunhiu Carter.
Ele deu um passo à frente, mas eu estendi o braço e o contive.
— Desjardins — falei com toda a calma de que era capaz. — Apófis está se reerguendo, caso você tenha perdido essa parte. Precisamos dos deuses. A Casa da Vida precisa reaprender os velhos métodos.
— Os velhos métodos nos destruíram! — gritou ele.
Uma semana antes, a expressão dele teria me feito tremer. Ele brilhava de ódio, e hieróglifos resplandeciam a seu redor. Ele era o Sacerdote-leitor Chefe, e eu tinha acabado de desfazer tudo o que a Casa da Vida havia construído desde a queda do Egito. Desjardins estava a um passo de me transformar em um inseto, e esse pensamento deveria me apavorar.
Em vez disso, eu o encarei. Naquele momento, eu era mais poderosa que ele. Muitomais poderosa. E deixei que ele soubesse disso.
— O orgulho destruiu você — eu disse. — Ganância e egoísmo e tudo isso. É difícil seguir o caminho dos deuses. Mas faz parte da magia. Não pode simplesmente eliminá-lo.
— Está embriagada pelo poder — rosnou ele. — Os deuses a possuíram, como sempre fizeram. Logo vai esquecer que é humana. Lutaremos contra você e a destruiremos. — Ele se voltou para Carter. — E você... Sabe o que Hórus vai exigir. Jamais recuperará o trono. Com meu último suspiro...
— Poupe-o — eu disse. Depois encarei meu irmão. — Sabe o que temos de fazer?
Um lampejo de compreensão passou entre nós. Fiquei surpresa com a facilidade com que era capaz de entender meu irmão. Achei que pudesse ser influência dos deuses, mas depois percebi que era porque nós dois somos Kane, somos irmão e irmã. E Carter, Deus me ajude, é também meu amigo.
— Tem certeza? — perguntou ele. — Vamos ficar sem cobertura. — Ele olhou para Desjardins. — Só mais um bom golpe com a espada?
— Tenho certeza, Carter.
Fechei os olhos e me concentrei.
Considere cuidadosamente, Ísis disse. O que fizemos até agora é só o começo do poder que podemos ter juntas.
Esse é o problema, respondi. Não estou preparada para isso. Preciso chegar lá sozinha, pelo caminho mais difícil.
É muito sábia para uma mortal, comentou Ísis. Muito bem.
Imagine abrir mão de uma fortuna em dinheiro. Imagine jogar fora o colar de diamantes mais lindo do mundo. Separar-me de Ísis era mais difícil que isso, muitomais. Mas não era impossível. “Conheço meus limites”, minha mãe tinha dito, e agora entendo quanto ela foi inteligente.
Senti o espírito da deusa me deixar. Parte pairava em meu amuleto, mas quase tudo se deslocou para o interior do Monumento a Washington, de volta ao Duat, de onde Ísis iria... para outro lugar. Outro hospedeiro? Eu não tinha certeza.
Quando abri os olhos, Carter estava a meu lado, aparentemente dominado pela tristeza, segurando seu amuleto do Olho de Hórus.
Desjardins estava tão aturdido que por um instante desaprendeu a falar inglês.
— C’est ne pas possible. On ne pourrait pas...
— Sim, pudemos — retruquei. — Desistimos dos deuses por vontade própria. E você tem muito o que aprender sobre o que é possível.
Carter baixou a espada.
— Desjardins, não quero o trono. Não a menos que o mereça e o conquiste, e isso vai levar tempo. Vamos aprender a trilhar o caminho dos deuses. Vamos ensinar aos outros. Pode perder seu tempo tentando nos destruir ou pode nos ajudar.
As sirenes estavam muito mais próximas. Dava para ver as luzes dos veículos de emergência vindo de vários lugares, cercando lentamente o National Mall. Tínhamos poucos minutos antes de estar sitiados.
Desjardins olhou para os magos atrás dele, provavelmente avaliando quanto apoio poderia conseguir. Todos pareciam surpresos. Um até começou a se curvar diante de mim, mas deteve-se.
Sozinho, Desjardins poderia ter conseguido nos deter. Éramos apenas magos agora – magos muito cansados, sem treinamento formal algum.
As narinas de Desjardins se inflaram. Depois ele me surpreendeu ao baixar seu cajado.
— Já houve muita destruição hoje. Mas o caminho dos deuses deve continuar lacrado. Se desafiar novamente a Casa da Vida...
Ele deixou a ameaça pairando no ar. Bateu o cajado no chão e, com uma última explosão de energia, os quatro magos se desfizeram no vento e sumiram.
De repente, eu me sentia exausta. O terror de tudo que havia enfrentado começava a se fazer mais evidente. Sobrevivemos, mas esse era um consolo pequeno. Eu tinha perdido meus pais. Sentia muita falta deles. Não era mais uma deusa. Era só uma menina comum, sozinha com meu irmão.
Amós gemeu e começou a se sentar. Carros de polícia e vans pretas e sinistras bloqueavam as calçadas a nossa volta. As sirenes uivavam. Um helicóptero sobrevoava o rio Potomac, aproximando-se depressa. Só Deus sabia o que os mortais pensavam ter acontecido no Monumento a Washington, mas eu não queria meu rosto estampado no noticiário da noite.
— Carter, precisamos sair daqui — eu disse. — Consegue reunir magia suficiente para transformar Amós em alguma coisa pequena, um rato, talvez? Podemos voar e tirá-lo daqui.
Ele assentiu, ainda perdido.
— Mas papai... Nós não...
E olhou em volta, impotente. Eu sabia como ele se sentia. A pirâmide, o trono, o caixão dourado... tudo tinha desaparecido. Fomos tão longe para resgatar papai, e tudo para perdê-lo. E a primeira namorada de Carter estava no chão, transformada em uma pilha de cacos de argila. Isso também não ajudava.
[Carter está dizendo que ela não era sua namorada de verdade. Ah, por favor!]
Mas eu não podia me prender a tudo isso. Precisava ser forte por nós dois, ou acabaríamos presos.
— Uma coisa de cada vez — retruquei. — Precisamos levar Amós para um local seguro.
— Para onde? — perguntou Carter.
Só havia um lugar em que eu conseguia pensar.

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