segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 30 - Bastet cumpre sua promessa

HORAS MAIS TARDE, ACORDEI NO SOFÁ DO RV com Bastet sacudindo meu braço.
— Chegamos — anunciou.
Eu nem imaginava quanto tempo tinha passado dormindo. Em algum momento, a paisagem plana e o tédio tinham me vencido, e comecei a ter pesadelos com pequenos magos voando à minha volta, tentando raspar minha cabeça. Em algum lugar no meio disso tudo, sonhei com Amós também. Um sonho ruim, mas nada nítido. Ainda não entendia por que Zia o tinha mencionado.
Pisquei para despertar e percebi que minha cabeça estava no colo de Khufu. O babuíno catava piolhos nela.
— Cara! — eu disse enquanto me sentava, ainda meio tonto. — Isso não é legal.
— Mas ele fez um penteado incrível — comentou Sadie.
— Agh-agh! — Khufu concordou.
Bastet abriu a porta do motor home.
— Vamos — chamou. — Daqui temos de seguir a pé.
Quando cheguei à porta, quase tive um infarto. Estávamos estacionados em uma estrada na montanha, tão estreita que se alguém espirrasse o RV desceria o barranco rolando.
Por um segundo, tive medo de já estar em Phoenix, porque a paisagem era semelhante. O sol se punha no horizonte. Cordilheiras majestosas se estendiam de um lado e do outro, e o deserto entre elas parecia infinito. Em um vale à nossa esquerda havia uma cidade sem cores – quase sem grama ou árvores, apenas areia, cascalho e prédios. A cidade, porém, era muito menor que Phoenix, e um rio largo passava ao sul, avermelhado e cintilante à luz do entardecer. O rio descrevia uma curva na base das montanhas onde estávamos, antes de continuar rumo ao norte.
— Estamos na lua — murmurou Sadie.
— El Paso, Texas — corrigiu Bastet. — E aquele é o rio Grande. — Ela inspirou profundamente o ar frio e seco. — Uma civilização ribeirinha no deserto. Muito parecida com o Egito, na verdade! Quer dizer, exceto pelo fato de que o México fica ali ao lado. Acho que este é o melhor lugar para invocar Néftis.
— Acha mesmo que ela nos dirá o nome secreto de Set? — perguntou Sadie.
Bastet refletiu.
— Néftis é imprevisível, mas ela já ficou contra o marido antes. Podemos ter esperança.
Isso não soava muito promissor. Olhei para o rio lá embaixo.
— Por que estacionamos na montanha? Por que não mais perto?
Bastet deu de ombros, como se nem tivesse pensado nisso.
— Gatos gostam de ficar no alto. Quanto mais alto, melhor. Caso tenhamos de atacar alguma coisa.
— Que bom — respondi. — Então, se precisarmos atacar, estamos bem.
— Não é tão ruim — disse Bastet. — Vamos descer até o rio percorrendo alguns quilômetros de areia, cactos e cascavéis. Só precisamos tomar cuidado com a Polícia de Fronteira, os coiotes que guiam imigrantes, os magos e os demônios... No final, invocamos Néftis.
Sadie assobiou.
— Nossa, estou muito animada!
— Agh! — Khufu concordou, infeliz. Ele farejou o ar e grunhiu.
— Khufu sente cheiro de problemas — traduziu Bastet. — Algo ruim vai acontecer.
— Até eu posso farejar isso — resmunguei, e seguimos Bastet montanha abaixo.
Sim, disse Hórus. Eu me lembro deste lugar.
É El Paso, falei. A menos que goste muito de comida mexicana, duvido que tenha estado aqui.
Eu lembro bem, insistiu ele. O pântano, o deserto.
Parei e olhei em volta. De repente, eu também lembrava. Uns cinquenta metros adiante, o rio se esparramava numa área pantanosa – uma teia de afluentes lentos cortando uma depressão rasa no deserto. A vegetação típica crescia nas margens. Deveria haver algum tipo de vigilância, já que aquela era uma fronteira internacional, mas eu não via nada.
Eu tinha estado ali na forma ba. Podia visualizar a choupana bem ali no meio do pântano, Ísis e o jovem Hórus se escondendo de Set. E rio abaixo... Sim, ali eu tinha sentido algo sombrio se movendo sob a água, esperando por mim.
Segurei o braço de Bastet quando ela estava a poucos passos da margem.
— Fique longe da água.
Ela me olhou, intrigada.
— Carter, eu sou uma gata. Não vou nadar. Mas, se queremos invocar uma deusa do rio, é preciso fazer isso perto da margem.
Ela falou como se aquilo fosse tão óbvio, que me senti um idiota, mas não podia evitar. Sentia que algo ruim ia acontecer.
O que é isso?, perguntei a Hórus. Qual é o desafio?
Mas meu deus inquilino estava silencioso, como se esperasse por algo.
Sadie jogou uma pedra na água escura e lamacenta. Ela fez barulho ao afundar.
— Parece seguro — concluiu minha irmã, já se aproximando da margem.
Khufu a segurou, hesitante. Quando chegou perto da água, ele a cheirou e rosnou.
— Viu? — observei. — Nem Khufu gosta disso.
— Deve ser alguma recordação ancestral — opinou Bastet. — O rio era um lugar perigoso no Egito. Cobras, hipopótamos, todo tipo de encrenca.
— Hipopótamos?
— Não brinque — Bastet me advertiu. — Hipopótamos podem ser letais.
— Foi um hipopótamo que atacou Hórus? — perguntei. — Quero dizer, nos velhos tempos, quando Set procurava por ele?
— Nunca ouvi essa história — respondeu Bastet. — Normalmente, o que se escuta é que Set começou usando escorpiões, e depois passou aos crocodilos.
— Crocodilos — repeti, e um arrepio percorreu minha espinha.
É isso?, perguntei a Hórus, que, de novo, não respondeu.
— Bastet, no rio Grande há crocodilos?
— Duvido muito. — Ela se ajoelhou na beira da água. — Agora, Sadie, se puder fazer as honras...
— Como?
— Apenas peça a Néftis que apareça. Ela era irmã de Ísis. Se estiver em algum lugar deste lado do Duat, deve ouvir sua voz.
Sadie parecia em dúvida, mas ela se ajoelhou ao lado de Bastet e tocou a água. Seus dedos criaram ondas que pareciam grandes demais, anéis de força que percorriam todo o rio.
— Oi... Néftis? — chamou ela. — Tem alguém em casa?
Ouvi um barulho rio abaixo e me virei a tempo de ver uma família de imigrantes atravessando a correnteza. Já escutara histórias sobre pessoas que todos os anos atravessam ilegalmente a fronteira, vindas do México em busca de trabalho e uma vida melhor, mas era assustador vê-las realmente na minha frente, um homem e uma mulher correndo, carregando uma menina pequena entre eles. Suas roupas estavam rasgadas e eles pareciam mais pobres que os mais miseráveis camponeses egípcios que eu já tinha visto. Olhei-os por alguns segundos, mas não pareciam ser nenhum tipo de ameaça sobrenatural. O homem me fitou com ar cansado, e foi como se chegássemos a um entendimento: nós dois já tínhamos problemas suficientes sem nos preocuparmos um com o outro.
Enquanto isso, Bastet e Sadie continuavam concentradas na água, vendo as ondas se espalharem com os dedos de minha irmã.
Bastet inclinou a cabeça, ouvindo atentamente.
— O que ela está dizendo?
— Não consigo entender — respondeu Sadie. — É muito fraco.
— Estão escutando alguma coisa? — perguntei.
— Shhh! — reagiram as duas ao mesmo tempo.
— Enjaulada... — disse Sadie. — Não, qual é a tradução desta palavra?
— Abrigada — sugeriu Bastet. — Ela está abrigada em algum lugar distante. Umahospedeira adormecida. O que isso quer dizer?
Eu não sabia sobre o que elas estavam falando. Não conseguia ouvir nada.
Khufu puxou minha mão e apontou para o rio, mais adiante.
— Agh.
A família de imigrantes havia desaparecido. Era impossível que eles tivessem atravessado tão depressa. Olhei para as duas margens – nenhum sinal deles – mas a água estava mais agitada onde eles tinham passado, como se alguém a tivesse mexido com uma colher enorme. Fiquei com um nó na garganta.
— Ah, Bastet...
— Carter, mal conseguimos ouvir Néftis — respondeu ela. — Por favor.
Eu rangi os dentes.
— Tudo bem. Khufu e eu vamos dar uma olhada em algo...
— Shhh! — repetiu Sadie.
Assenti para Khufu, e nós dois começamos a caminhar pela margem. Ele se escondia atrás de minhas pernas e grunhia para o rio.
Olhei para trás, mas Bastet e Sadie pareciam bem. Elas ainda olhavam para a água como se vissem ali um incrível vídeo da internet.
Finalmente, chegamos ao lugar onde eu tinha visto a família, e a água se acalmara. Khufu bateu no chão e fez uma parada acrobática, o que significava que ou ele estava dançando break ou estava mesmo muito nervoso.
— O que é? — perguntei com o coração disparado.
— Agh, agh, agh! — ele reclamou.
Isso devia ser um discurso completo na língua dos babuínos, mas eu nem imaginava o que queria dizer.
— Bem, não vejo outra solução — concluí. — Se aquela família foi tragada pelo rio ou coisa parecida... tenho que encontrá-los. Vou mergulhar.
— Agh! — Ele se afastou da água.
— Khufu, aquelas pessoas carregavam uma criança. Se estiverem precisando de ajuda, não posso simplesmente ir embora. Fique aqui e me dê proteção.
Khufu grunhiu e bateu na própria cara em protesto por eu estar entrando na água. O rio era mais gelado e agitado do que eu havia imaginado. Concentrei-me e evoquei do Duat minha espada e a varinha. Talvez fosse imaginação, mas pareceu que o rio passou a correr mais depressa.
Eu estava no meio da correnteza quando Khufu gritou com urgência. Ele pulava na margem, apontando freneticamente para um monte de juncos.
A família estava encolhida ali, tremendo de medo, todos de olhos arregalados. Meu primeiro pensamento foi: Por que estão se escondendo de mim?
— Não vou fazer mal a vocês — prometi.
Eles me olharam confusos, e lamentei não falar espanhol.
Então, a água se agitou à minha volta e percebi que não era eu que os assustava. Meu segundo pensamento: Cara, sou muito burro.
A voz de Hórus gritou: Pule!
Saí da água como se arremessado por um canhão – vinte, trinta metros no ar. Eu jamais deveria ter conseguido fazer aquilo, mas foi bom, porque um monstro emergiu da água bem onde eu estava.
Tudo o que vi foram centenas de dentes: uma boca vermelha três vezes maior do que a minha. Não sei como, mas consegui me virar no ar e aterrissei em pé, na parte rasa do rio. Estava diante de um crocodilo tão grande quanto nosso RV – e aquela era só a parte que estava fora da água. A pele dele era verde-cinzenta e coberta por placas espessas, como uma armadura camuflada, e os olhos eram leitosos.
A família gritou e correu para a margem. O movimento chamou a atenção do crocodilo. Ele se virou instintivamente na direção do barulho, pressentindo presa mais interessante. Sempre achei que crocodilos fossem lentos, mas, quando ele partiu atrás dos imigrantes, percebi que nunca tinha visto nada tão rápido.
Distraia-o, Hórus me incentivou. Ataque-o por trás.
Em vez disso, eu gritei:
— Sadie, Bastet, socorro! — E arremessei minha varinha.
Um péssimo arremesso. A varinha caiu no rio, bem em frente ao crocodilo, depois quicou na superfície da água, como uma pedra, acertou o animal entre os olhos e voltou para minha mão.
Duvido que tenha causado algum dano, mas o bicho me olhou muito aborrecido.
Ou você pode bater nele com a varinha..., resmungou Hórus.
Ataquei, gritando para prender a atenção do animal. Pelo canto do olho, vi a família chegando a uma área segura. Khufu corria atrás deles, agitando os braços e gritando para empurrá-los para mais longe da margem. Eu não sabia se eles estavam fugindo do crocodilo ou do macaco louco, mas, desde que continuassem correndo, não fazia diferença.
Não conseguia ver o que estava acontecendo com Bastet e Sadie. Ouvi gritos e ruídos na água atrás de mim, porém, antes que eu pudesse olhar, o crocodilo atacou.
Desviei para a esquerda e o golpeei com minha espada. A lâmina ricocheteou no corpo do crocodilo. O monstro se debateu. Sua cauda teria acertado minha cabeça, mas, instintivamente, ergui a varinha e o crocodilo colidiu contra uma parede de força e caiu para trás, como se eu estivesse protegido por uma grande bolha de energia invisível.
Tentei invocar o falcão guerreiro, mas era muito difícil me concentrar com um réptil de seis toneladas tentando me rasgar ao meio com uma mordida.
De repente, ouvi Bastet gritar:
— NÃO!
E soube imediatamente, sem sequer precisar olhar, que havia algo errado com Sadie.
O desespero e a fúria transformaram meus nervos em aço. Estendi o braço com a varinha e a parede de energia projetou-se, atingindo o crocodilo com tanta força que ele foi jogado longe, fora do rio, na margem mexicana.
Enquanto ele estava de costas, caído e desequilibrado, saltei e levantei a espada, que então brilhava em minhas mãos, e enterrei a lâmina na barriga do monstro. Segurei-a com força enquanto o crocodilo se debatia e se desintegrava lentamente, do focinho à ponta da cauda, até eu estar no meio de um monte enorme de areia molhada.
Virei-me e vi Bastet lutando contra um crocodilo quase tão grande quanto o que eu acabara de destruir. O réptil atacou e Bastet se jogou embaixo dele, rasgando sua garganta com as lâminas. O crocodilo desfez-se no rio até ser apenas uma nebulosa nuvem de areia. Mas o estrago estava feito: Sadie estava caída na margem do rio.
Quando cheguei lá, Bastet e Khufu já estavam ao lado dela. Havia sangue na cabeça da Sadie. Seu rosto estava pálido.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Aquilo saiu do nada — respondeu Bastet, aflita. — A cauda do crocodilo acertou Sadie e a jogou longe. Ela não teve a menor chance. Acha que ela está...
Khufu pôs a mão na testa de Sadie e fez ruídos estranhos com a boca, uma sequência de pops.
Bastet suspirou aliviada.
— Khufu diz que ela vai sobreviver, mas precisamos tirá-la daqui. Aqueles crocodilos podem significar...
A voz dela sumiu. No meio do rio, a água estava fervendo. Erguendo-se dali eu vi uma figura tão horrível que tive certeza de que estávamos condenados.
— Podem significar aquilo — completou Bastet em tom sombrio.
Para começar, o sujeito devia ter uns seis metros de altura – e não estou me referindo a um avatar radiante. Era de carne e osso. O peito e os braços eram humanos, mas a pele era verde-clara, e ele tinha na cintura um saiote de guerra que lembrava couro de um réptil. A cabeça era de crocodilo, a boca era enorme, cheia de dentes brancos e tortos, e os olhos brilhavam com um muco verde (sim, eu sei, muito atraente). Os cabelos negros caíam em tranças até os ombros, e chifres de touro enfeitavam a cabeça. Como se tudo isso não fosse suficientemente estranho, ele parecia suar de um jeito absurdo: uma água oleosa vertia de seus poros em torrentes que formavam poças no rio.
Ele ergueu o cajado – um pedaço de madeira verde tão grande quanto um poste telefônico. Bastet gritou “Saia!” e me puxou para trás um segundo antes de o homem-crocodilo fincar o cajado na margem do rio, exatamente onde eu estava.
— Hórus! — o monstro gritou.
A última coisa que eu queria era dizer “presente”. Mas a voz do deus soou com urgência em minha cabeça.
Enfrente-o. Sobek só entende a linguagem da força. Não se deixe agarrar, ou ele o puxará para baixo e o afogará.
Engoli o medo.
— Sobek! — gritei. — U-hu, fracote! Como vai?
O monstro mostrou os dentes. Talvez essa fosse sua versão de um sorriso simpático. Provavelmente não.
— Essa forma não serve para você, deus falcão — disse ele. — Eu vou parti-lo ao meio.
A meu lado, Bastet sacou suas lâminas.
— Não permita que ele o agarre — ela me preveniu.
— Já estou sabendo — respondi.
Senti a presença de Khufu do meu lado direito, levando Sadie para o alto da margem com todo o cuidado, bem devagar. Eu precisava distrair o sujeito verde, pelo menos até eles estarem seguros.
— Sobek, deus dos... crocodilos, acho. Deixe-nos em paz ou vou destruir você.
Bom, Hórus aprovou. Destruir é bom.
Sobek gargalhou.
— Seu senso de humor melhorou, Hórus. Você e sua gatinha vão me destruir? — Ele voltou os olhos cheios de muco para Bastet. — O que a traz ao meu reino, deusa gata? Achei que não gostasse de água.
Ao pronunciar a última palavra, ele apontou o cajado e produziu uma torrente de água verde. Bastet era muito rápida. Ela deu um salto e caiu atrás de Sobek com seu avatar totalmente formado: um guerreiro enorme e radiante com cabeça de gato.
— Traidor! — gritou Bastet. — Por que se alia ao caos? Seu dever é com o rei!
— Que rei? — Sobek rugiu. — Rá? Ele se foi! Osíris está morto outra vez, o fraco! Esse menino não pode restaurar o império. Houve um tempo em que apoiei Hórus, sim. Mas ele não tem força nessa forma. Não tem seguidores. Set oferece poder. Set oferece carne fresca. E acho que vou começar com carne de deus menor!
Ele se virou em minha direção e baixou o cajado. Eu rolei para longe do golpe, mas, com a mão livre, ele me agarrou pela cintura. Não fui suficientemente rápido. Bastet se retesou, preparando-se para investir contra o inimigo, e, antes que pudesse, Sobek largou o cajado, segurou-me com as duas mãos enormes e me afundou na água.
Minha sensação foi de sufocar na escuridão verde e fria. Eu não enxergava e não conseguia respirar. Afundava cada vez mais, e as mãos de Sobek espremiam o ar para fora de meus pulmões.
É agora ou nunca!, Hórus me avisou. Deixe-me assumir o controle.
Não, respondi. Prefiro morrer.
Era estranho, mas esse pensamento me acalmou. Se eu já estivesse morto, não teria mais do que sentir medo. Então, eu podia afundar lutando.
Concentrei-me em meu poder e senti a força percorrendo meu corpo. Flexionei os braços, e as mãos de Sobek se tornaram menos opressoras. Invoquei o avatar do falcão guerreiro e fui imediatamente envolvido por uma forma dourada e brilhante tão grande quanto Sobek. Agora podia ver o monstro na água escura, os olhos mucosos arregalados de surpresa.
Escapei de suas garras e dei uma cabeçada nele, quebrando alguns de seus dentes. Depois, eu me lancei para fora da água e caí em pé na margem do rio, ao lado de Bastet, que levou um susto tão grande que quase me atingiu com suas lâminas.
— Graças a Rá! — exclamou ela.
— Sim, estou vivo.
— Não, é que quase mergulhei atrás de você. E odeio água!
Sobek então explodiu do rio, urrando de fúria. O sangue verde jorrava de uma de suas narinas.
— Não pode me derrotar! — Ele estendeu os braços, de onde chovia suor. — Sou o senhor da água! Meu suor dá origem aos rios do mundo!
Eca. Decidi nunca mais nadar em um rio.
Olhei para trás, procurando por Khufu e Sadie, mas não os vi. Esperava que Khufu a tivesse levado para um lugar seguro ou, pelo menos, tivesse encontrado um esconderijo.
Sobek atacou usando o rio. Uma onda enorme me atingiu, derrubando-me no chão, mas o avatar de Bastet saltou nas costas dele. O peso não o incomodou. Ele tentou agarrá-la, sem sorte. Bastet golpeava os braços do monstro repetidas vezes, e também as costas e a nuca, mas a pele verde cicatrizava tão depressa quanto Bastet conseguia rasgá-la.
Tentei me levantar, uma proeza que, na forma avatar, é como pôr-se de pé com um colchão amarrado ao peito. Sobek finalmente conseguiu agarrar Bastet e jogá-la longe. Ela rolou pela margem do rio sem se ferir, mas sua aura azul tremulava. Era um sinal de que seu poder fraquejava.
Brincamos de pega-pega com o deus crocodilo – atacando e recuando – porém, quanto mais o feríamos, mais furioso e poderoso ele parecia ficar.
— Mais servos! — gritou ele. — Venham a mim!
Isso não podia ser bom. Outra rodada de crocodilos gigantes e estaríamos mortos.
Por que não temos servos?, reclamei com Hórus, mas ele não respondeu. Eu podia senti-lo lutando para canalizar em mim seu poder, tentando sustentar nossa magia de combate.
O punho de Sobek acertou Bastet e ela voou longe novamente. Dessa vez, quando chegou ao chão, seu avatar piscou e se apagou por um instante.
Eu investi, tentando atrair a atenção dele. Infelizmente, deu certo. Sobek se virou e me acertou com a água. Fiquei sem visão, e ele me deu um tapa tão violento que fui parar na margem do rio, rolando na vegetação. Meu avatar entrou em colapso. Eu me sentei, atordoado, e vi Khufu e Sadie a meu lado, ela ainda desmaiada e sangrando, Khufu murmurando desesperadamente no idioma babuíno e afagando a testa dela.
Sobek saiu da água e riu para mim. Rio abaixo, mais ou menos a meio metro de distância e sob a luz pálida do anoitecer, enxerguei duas linhas fracas na superfície se aproximarem rapidamente. Os reforços de Sobek.
Bastet gritou do rio.
— Carter, depressa! Tire Sadie daqui!
O rosto de Bastet ficou pálido com o esforço, mas o avatar do guerreiro gato apareceu em volta dela mais uma vez. Porém estava fraco, quase não aparecia.
— Não! — respondi. — Você vai morrer!
Tentei invocar o falcão guerreiro, o que fez minhas entranhas queimarem de dor. Eu estava sem energia, e o espírito de Hórus estava adormecido, totalmente esgotado.
— Vá! — gritou Bastet. — E diga a seu pai que cumpri a promessa.
— NÃO!
Ela saltou sobre Sobek. Os dois lutaram, Bastet golpeando furiosamente o rosto de Sobek, enquanto ele gritava de dor. Os dois deuses caíram na água, e afundaram.
Corri até a beira da água, que borbulhava e espumava. Depois, uma explosão verde iluminou toda a extensão do rio Grande, e uma pequena criatura preta e dourada foi ejetada dali como se alguém a tivesse jogado. E caiu na grama, aos meus pés: um gato molhado, inconsciente, semimorto.
— Bastet?
Peguei o bichano com cuidado. Ele usava o colar de Bastet, mas o talismã da deusa virou pó diante de meus olhos. Não era mais Bastet. Era só Muffin.
Lágrimas ardiam em meus olhos. Sobek tinha sido derrotado, forçado a voltar para o Duat ou coisa parecida, mas ainda havia duas linhas fracas vindo em nossa direção pelo rio, e estavam suficientemente próximas agora – eu já podia ver os dorsos esverdeados e os olhos redondos dos monstros.
Aninhei o gato em meu peito e olhei para Khufu.
— Venha, temos que...
Fiquei paralisado, porque atrás de Khufu e de minha irmã, olhando para mim, havia um crocodilo diferente: totalmente branco.
Estamos mortos, pensei. E depois: Espere... Um crocodilo branco?
Ele abriu a mandíbula e atacou, bem em minha direção. Eu me virei e o vi colidir com outros dois crocodilos: os monstros verdes e gigantescos que se preparavam para me matar.
— Filipe? — chamei, surpreso, enquanto os crocodilos lutavam e se debatiam.
— Sim — respondeu uma voz masculina.
Virei-me e vi o impossível. Tio Amós estava ajoelhado ao lado de Sadie, examinando a cabeça dela com ar apreensivo e compenetrado. E me olhou com uma expressão urgente.
— Filipe vai manter os servos de Sobek ocupados, mas não por muito tempo. Venha comigo agora, e teremos uma pequena chance de sobreviver!

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