domingo, 18 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 20 - Eu visito a deusa estrelada

EU NÃO TINHA IDEIA DE QUANTO SERIA PERTURBADOR. Carter tinha me contado como o ba havia deixado seu corpo enquanto ele dormia, mas viver a experiência era bem diferente. Foi muito pior que minha visão no Salão das Eras.
Lá estava eu, flutuando no ar como o espírito de uma ave brilhante. E lá estava meu corpo, embaixo de mim, adormecido. Tentar descrever a sensação é suficiente para me dar dor de cabeça.
A primeira coisa que pensei quando olhei para baixo e vi meu corpo adormecido foi: Meu Deus, estou horrível. Já era terrível me olhar no espelho ou ver fotos nas páginas de meus amigos na internet. Ver minha própria imagem era simplesmente errado. Meus cabelos estavam um ninho de ratos, o pijama de linho em nada me favorecia e a espinha em meu queixo era enorme.
A segunda coisa que pensei ao examinar a estranha forma brilhante de meu ba: Isso não vai prestar. Não me importava se eu era ou não invisível ao olho mortal. Depois da péssima experiência como um papagaio, eu simplesmente me recusava a sair por aí como uma galinha cintilante com cabeça de Sadie. Carter podia aceitar esse tipo de situação, mas eu tenho meus padrões.
Senti as correntes do Duat me puxando, tentando levar meu ba para onde vão as almas quando têm visões, mas eu não estava preparada. Concentrei-me de verdade e imaginei minha aparência normal (ah, tudo bem, talvez minha aparência como eugostaria que fosse, um pouco melhor do que o normal). E voilà, meu ba se metamorfoseou na forma humana, ainda transparente e brilhante, sim, mas mais parecida com um fantasma ajeitado.
Bem, pelo menos isso está resolvido, pensei. E deixei as correntes me levarem. O mundo se desfez numa mancha negra.
No início, eu não estava em lugar nenhum – era só um vácuo escuro. Depois, um homem jovem surgiu das sombras.
— Você novamente — disse ele.
— Ah... Hum... — gaguejei.
Honestamente, você já me conhece bem a esta altura. Não é uma atitude típica para mim. Mas aquele era o garoto que eu tinha encontrado na visão do Salão das Eras –  garoto bonito com a túnica negra e os cabelos desarrumados. Seus olhos castanhos me deixavam nervosa, e eu estava muito satisfeita por ter me livrado da forma de galinha brilhante.
Tentei novamente, e consegui falar três palavras inteiras.
— O que você...
— O que estou fazendo aqui? — completou ele num gesto de cavalheirismo. — Viagem no espírito e morte são coisas muito semelhantes.
— Não sei bem o que isso significa — confessei. — Devo ficar preocupada?
Ele inclinou a cabeça, como se considerasse a questão.
— Não desta vez. Ela só quer falar com você. Vá em frente.
Ele moveu a mão e uma porta se abriu na escuridão. Fui puxada por ela.
— Vou ver você de novo? — perguntei.
Mas o garoto tinha desaparecido.
Eu estava em pé num luxuoso apartamento no meio do céu. Não havia paredes nem teto, e pelo chão transparente era possível ver as luzes da cidade da altura de um avião. Nuvens passavam sob meus pés. O ar devia ser gelado e rarefeito, impossível de respirar, mas eu o sentia morno e confortável.
Sofás de couro preto desenhavam um U em volta de uma mesa de café, sobre um tapete vermelho sangue. O fogo ardia na lareira de ardósia. Estantes e quadros pairavam no ar onde deveriam estar as paredes. Um balcão de granito preto marcava o que deveria ser um canto, e nas sombras atrás dele uma mulher preparava chá.
— Olá, minha criança — cumprimentou ela.
A mulher caminhou para a luz e eu deixei escapar uma exclamação de surpresa. Ela vestia uma saia egípcia e um sutiã de biquíni, e sua pele... A pele era azul-escura e coberta de estrelas. Não estou dizendo que eram estrelas pintadas. Ela tinha o cosmos vivo em sua pele: constelações brilhantes, galáxias radiantes demais para podermos olhá-las, nebulosas cintilantes de poeira cor-de-rosa e azul. Seus traços pareciam desaparecer nas estrelas que passavam por seu rosto. Os cabelos eram longos e negros como a noite.
— Você é Nut — concluí. — Quer dizer... a deusa do céu.
A deusa sorriu. Os dentes brancos e brilhantes eram como uma nova galáxia explodindo para a vida.
— Nut é suficiente.
Ela serviu chá em duas xícaras.
— Vamos nos sentar e conversar. Quer um pouco de sahlab?
— Ah, não é chá?
— Não, é uma bebida egípcia. Já ouviu falar em chocolate quente? É muito parecido com baunilha quente.
Eu preferiria chá, porque não bebia uma boa xícara havia eras. Mas imaginava que não se podia rejeitar a oferta de uma deusa.
— Hum... Sim, obrigada.
Nós nos sentamos juntas no sofá. Para minha surpresa, minhas brilhantes mãos de espírito não tinham dificuldade para segurar a xícara, e eu bebia com facilidade. Osahlab era doce e saboroso, com um leve toque de canela e coco. Aquilo me aquecia e perfumava o ar com o cheiro de baunilha. Pela primeira vez em dias, eu me senti segura. Depois, lembrei que só estava ali em espírito.
Nut pousou sua xícara.
— Deve estar se perguntando por que a trouxe aqui.
— Onde exatamente é “aqui”? E, ah, quem é seu porteiro?
Eu esperava que ela me desse alguma informação sobre o garoto de roupa preta, mas ela apenas sorriu.
— Devo guardar meus segredos, querida. Não posso permitir que a Casa da Vida tente me localizar. Digamos apenas que construí este apartamento com uma bela vista da cidade.
— É que... — Eu apontei para o céu azul e estrelado. — Você está dentro de um hospedeiro humano?
— Não, querida. O próprio céu é meu corpo. Isso é apenas uma manifestação.
— Mas eu pensei...
— Que os deuses precisassem de um hospedeiro físico fora do Duat? Para mim, tudo é um pouco mais fácil, por eu ser um espírito do ar. Sou uma das poucas deusas que nunca foi aprisionada, porque a Casa da Vida nunca conseguiu me pegar. Estou acostumada a ser... livre de forma.
De repente, Nut e todo o apartamento piscaram. Tive a sensação de que cairia no chão. Mas em seguida o sofá se tornou estável novamente.
— Por favor, não faça mais isso — implorei.
— Peço desculpas — Nut respondeu. — O ponto é que cada deus é diferente. Mas todos os meus irmãos estão livres agora, todos encontrando lugares nesse seu mundo moderno. Eles não serão mais aprisionados.
— Os magos não vão gostar nada disso.
— Não. E essa é a primeira razão pela qual foi trazida aqui. Uma batalha entre os deuses e a Casa da Vida só serviria ao caos. Precisa fazer os magos entenderem isso.
— Eles não vão me ouvir. Acham que sou uma deusa menor.
— Você é, minha querida.
Ela tocou os meus cabelos com delicadeza, e senti Ísis se movendo dentro de mim, tentando falar usando minha voz.
— Eu sou Sadie Kane — anunciei. — Não convidei Ísis para pegar carona em mim.
— Os deuses conhecem sua família há gerações, Sadie. Nos velhos tempos, trabalhamos juntos pelo bem do Egito.
— Os magos disseram que os deuses causaram a queda do império.
— Essa é uma discussão antiga e inútil — retrucou Nut, e ouvi uma pontinha de raiva na voz dela. — Todos os impérios caem. Mas a ideia do Egito é eterna: o triunfo da civilização, as forças do Maat superando as forças do caos. Essa batalha é travada geração após geração. Agora é sua vez.
— Eu sei, eu sei. Temos de derrotar Set.
— Mas é assim tão simples, Sadie? Set também é meu filho. Nos velhos tempos, ele era o tenente mais forte de Rá. Protegia o barco do deus sol da serpente Apófis. Isso, sim, era o mal. Apófis era a personificação do caos. Ele odiou a Criação desde o momento em que a primeira montanha surgiu do mar. Odiava deuses, mortais e tudo o que eles construíam. E Set lutou contra ela. Set era um de nós.
— E depois ficou mau?
Nut deu de ombros.
— Set sempre foi Set, para o melhor ou para o pior. Mas ele ainda faz parte de nossa família. É difícil perder um membro da família... não é?
Minha garganta ficou apertada.
— Isso não é justo.
— Não me fale de justiça. Há cinco mil anos sou mantida separada de meu marido, Geb.
Eu me lembrava vagamente de Carter ter dito alguma coisa sobre isso, mas era diferente ouvi-la agora, perceber a dor em sua voz.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Punição por ter meus filhos — respondeu ela amargurada. — Desobedeci aos desejos de Rá, e por isso ele ordenou a meu pai, Shu...
— Espere — interrompi. — Shoe?
Em inglês, o nome do pai dela seria sapato!
— Shu. S-H-U. O deus do vento.
— Ah. — Seria melhor se esses deuses não tivessem nomes de simples objetos domésticos. — Continue, por favor.
— Rá ordenou a meu pai, Shu, que nos mantivesse separados para sempre. Fui exilada no céu, enquanto meu adorado Geb não podia deixar o chão.
— O que acontece se ele tentar?
Nut fechou os olhos e abriu as mãos. Um buraco se abriu onde ela estava sentada, e Nut caiu. Instantaneamente, as nuvens abaixo de nós tremularam iluminadas por raios. Ventos varreram o apartamento, derrubando os livros das estantes, arrastando as pinturas para o vazio. A xícara pulou de minha mão. Agarrei o sofá para não ser arrastada também.
Abaixo de mim, um raio atingiu a forma de Nut. O vento a empurrou violentamente para cima, e ela passou por mim. Então, os ventos cessaram. Nut se sentou novamente no sofá. Ela moveu a mão e o apartamento voltou ao que era antes. Tudo voltou ao normal.
— Acontece isso — disse ela com tom triste.
— Ah.
Ela olhou para as luzes da cidade lá embaixo.
— Todos são meus filhos queridos, inclusive Set. Ele fez algumas coisas horríveis, é verdade. É sua natureza. Mas ainda é meu filho, e ainda é um dos deuses. Ele tem seu papel. Talvez a maneira de derrotá-lo não seja aquela que você imagina.
— Alguma sugestão?
— Procure Tot. Ele encontrou um novo lar em Memphis.
— Memphis... Egito?
Nut sorriu.
— Memphis, Tennessee. Mas o velho pássaro provavelmente pensa que é no Egito. Ele raramente tira o bico dos livros, por isso duvido que saiba a diferença. Você o encontrará lá. Ele pode aconselhá-la. Mas tome cuidado: Tot costuma pedir favores. Às vezes, ele é difícil de prever.
— Estou me acostumando a isso — respondi. — Como vamos chegar lá?
— Sou a deusa do céu. Posso garantir sua viagem segura até Memphis. — Ela moveu a mão e uma pasta surgiu em meu colo. Dentro dela havia passagens de avião: Washington-Memphis, primeira classe.
Eu a encarei, surpresa.
— Você deve ter muitas milhas.
— É mais ou menos isso — concordou Nut. — Mas quando se aproximar de Set, não poderei mais ajudá-la. E não posso protegê-la em terra. O que me lembra que você precisa acordar logo. O seguidor de Set se aproxima de seu esconderijo.
Ergui os ombros.
— Quanto tempo?
— Minutos.
— Mande meu espírito de volta, então!
Belisquei meu braço de fantasma e senti a dor, como se estivesse em minha forma física normal. Mas nada mais aconteceu.
— Logo, Sadie — prometeu Nut. — Mas você precisa saber mais duas informações. Tive cinco filhos durante os Dias do Demônio. Se seu pai libertou todos eles, você deve refletir: onde está o quinto?
Vasculhei meu cérebro tentando lembrar o nome de cada um dos cinco filhos de Nut. Era um pouco difícil sem meu irmão, a Wikipédia Humana, para me ajudar com os detalhes e as informações. Havia Osíris, o rei, e Ísis, sua rainha; Set, o deus mau, e Hórus, o vingador. Mas o quinto filho de Nut, aquele que Carter dissera nunca conseguir lembrar... Então, eu me lembrei da visão no Salão das Eras, o aniversário de Osíris e a mulher de azul que ajudara Ísis a escapar de Set.
— Você quer dizer Néftis, esposa de Set?
— Reflita — repetiu Nut. — E finalmente... um favor.
Ela abriu a mão e mostrou um envelope lacrado com cera vermelha.
— Se vir Geb... pode entregar isto a ele?
Eu já tinha sido solicitada para entregar mensagens e recados antes, mas nunca entre deuses. Honestamente, a expressão angustiada de Nut não era diferente daquela de minhas amigas apaixonadas na escola. Fiquei imaginando se algum dia ela tinha escrito em seu caderno: GEB + NUT = AMOR VERDADEIRO, ou SRA. GEB.
— É o mínimo que posso fazer — respondi. — Agora, sobre me mandar de volta...
— Boa viagem, Sadie — desejou a deusa. — E Ísis, contenha-se.
O espírito de Ísis se moveu dentro de mim, como se eu tivesse comido curry estragado.
— Espere — falei —, o que quer dizer com conter...
Antes que eu pudesse concluir, tudo ficou preto.
Acordei de repente, novamente em meu corpo no Monumento a Washington.
— Vamos agora!
Carter e Bastet pularam, surpresos. Eles já estavam acordados, pegando suas coisas.
— O que foi? — perguntou Carter.
Contei a ele sobre a visão enquanto vasculhava freneticamente meus bolsos. Nada. Examinei a bolsa de meu pai. Dentro dela, com minha varinha e meu cajado, havia três passagens aéreas e um envelope lacrado.
Bastet examinou as passagens.
— Excelente! Na primeira classe servem salmão.
— Mas e o seguidor de Set? — Eu quis saber.
Carter olhou pela janela. Os olhos dele se estreitaram.
— Sim, ah... está aqui.

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