segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 35 - Homens pedindo informações (e outros sinais do Apocalipse)

NÃO SEI COMO CONSEGUI, com Carter e Zia falando o tempo todo, mas dormi um pouco na cama do caminhão. Mesmo depois da agitação de ver Amós vivo, assim que voltamos para a estrada, eu me deitei e dormi. Suponho que um bom ha-di possa ter esse poder.
Naturalmente, meu ba aproveitou a oportunidade para viajar. Quem me dera ter um repouso tranquilo.
Voltei a Londres, às margens do Tâmisa. A Agulha de Cleópatra se erguia diante de mim. Era um dia cinzento, frio e calmo, e até o cheiro do lixo na maré baixa me deixava com saudades de casa.
Ísis estava a meu lado usando um vestido branco como uma nuvem, os cabelos negros trançados com diamantes. Suas asas multicoloridas apareciam e sumiam atrás dela, lembrando a aurora boreal.
— Seus pais tiveram a ideia certa — disse ela. — Bastet não estava mais conseguindo.
— Ela era minha amiga — respondi.
— Sim. Uma boa e leal servidora. Mas o caos não pode ser contido para sempre. Ele cresce. Esgueira-se pelas brechas da civilização, rompe limites. Não pode ser mantido em estado de equilíbrio. E isso é simplesmente sua natureza.
O obelisco estremeceu, brilhando levemente.
— Hoje é o continente americano — continuou Ísis — mas, a menos que os deuses sejam convocados, a menos que tenhamos de volta todo nosso poder, logo o caos destruirá todo o mundo humano.
— Estamos fazendo o melhor que podemos — insisti. — Vamos derrotar Set.
Ísis me olhou com tristeza.
— Você sabe que não é disso que estou falando. Set é só o começo.
A imagem mudou e vi Londres em ruínas. Eu tinha visto fotos horríveis do bombardeio na Segunda Guerra Mundial, mas não eram nada comparadas àquele cenário. A cidade era uma coisa só: pó e escombros por quilômetros, o Tâmisa sufocado pela espuma. A única construção em pé era o obelisco, e ele começou a rachar, os quatro lados se desprendendo como pétalas de uma flor murcha.
— Não quero ver isso — pedi.
— Vai acontecer em breve — retrucou Ísis — como sua mãe previu. Mas, se você não pode encarar...
A cena mudou novamente. Estávamos na sala do trono de um palácio – o mesmo que eu tinha visto antes, onde Set sepultara Osíris. Os deuses estavam se reunindo, materializando-se como raios de luz penetrando no cômodo, enroscando-se nas colunas, tomando a forma humana. Um deles era Tot, com seu jaleco cheio de manchas, seus óculos de aros de metal e os cabelos arrepiados. Outro se tornou Hórus, o jovem guerreiro e orgulhoso com um olho dourado e outro prateado. Sobek, o deus crocodilo, agarrou seu cajado de água e mostrou os dentes para mim. Uma massa de escorpiões se reuniu atrás de uma coluna e saiu pelo outro lado como Serket, a deusa aracnídea de veste marrom. Então, meu coração parou, porque vi um garoto de preto nas sombras atrás do trono: Anúbis, seus olhos escuros me estudando com pesar.
Ele apontou para o trono, e vi que estava vazio. O palácio sentia falta de seu coração. A sala estava vazia e escura, e era impossível acreditar que um dia aquele tinha sido um local de celebrações.
Ísis me olhou.
— Precisamos de um governante. Hórus deve se tornar faraó. Ele precisa unir os deuses e a Casa da Vida. É a única solução.
— Não pode estar falando de Carter — respondi. — Meu irmão enrolado... um faraó? Está brincando?
— Precisamos ajudá-lo. Você e eu.
A ideia era tão ridícula que, se os deuses não estivessem olhando para mim com aquele ar tão grave, eu teria rido.
— Ajudá-lo? — repeti. — Por que ele não me ajuda a ser faraó?
— Já houve mulheres faraós muito fortes — reconheceu Ísis. — Hatshepsut governou bem por muitos anos. O poder de Nefertiti era igual ao do marido. Mas seu caminho é outro, Sadie. Seu poder não virá de um trono. E você sabe disso.
Olhei para o trono e percebi que Ísis tinha razão. A ideia de me sentar ali com uma coroa na cabeça, tentando governar aquele bando de deuses mal-humorados e temperamentais, não me interessava nem um pouco. Mas... Carter?
— Você se fortaleceu, Sadie — disse Ísis. — Acho que não percebe quanto. Logo enfrentaremos juntas o teste. E venceremos, se você mantiver sua coragem e sua fé.
— Coragem e fé — repeti. — Não são meus pontos mais fortes.
— Sua hora vai chegar — avisou Ísis. — Nós contamos com você.
Os deuses se reuniram à nossa volta, olhando para mim com expectativa. Eles começaram a se aproximar, e foram se juntando até eu não conseguir respirar, agarrando meus braços, me sacudindo...
Acordei com Zia cutucando meu ombro.
— Sadie, nós paramos.
Levei a mão à varinha numa reação instintiva.
— O quê? Onde?
Zia empurrou as cortinas em volta da cama e, do banco dianteiro, inclinou-se sobre mim, o que me enervou.
— Amós e Carter estão no posto de gasolina. Você precisa se preparar para entrar em ação.
— Por quê? — Eu me sentei e olhei pelo para-brisa, e vi a tempestade. — Ah...
O céu estava preto, era impossível dizer se era dia ou noite. Rajadas de vento carregavam muita areia, mas consegui ver que estávamos estacionados diante de um posto bastante iluminado.
— Estamos em Phoenix — informou Zia — porém a maior parte da cidade está fechada. As pessoas estão partindo.
— Que horas são?
— Quatro e meia da manhã. A magia não está funcionando bem. Quanto mais nos aproximamos da montanha, pior fica. E o sistema de GPS do caminhão parou. Amós e Carter foram ao posto pedir informações.
Isso não soava promissor. Se dois magos do sexo masculino estavam suficientemente desesperados para parar e pedir informações, estávamos mesmo encrencados.
O vento sacudiu a cabine do caminhão, e o barulho era assustador. Depois de tudo o que havíamos enfrentado, eu me sentia tola por sentir medo de uma tempestade, mas pulei para a frente a fim de me sentar ao lado de Zia.
— Há quanto tempo eles estão lá? — perguntei.
— Não muito. Queria falar com você antes que voltassem.
Eu ergui uma sobrancelha.
— Sobre Carter? Bem, se tem dúvidas de que ele gosta de você, a gagueira pode ser uma indicação.
Zia franziu o cenho.
— Não, eu...
— Quer saber se me importo? Quanta consideração. Confesso que, no início, tive dúvidas, com você ameaçando nos matar e tudo o mais, mas decidi que você não é má, e Carter é maluco por você, então...
— Não é sobre Carter.
Franzi o nariz.
— Ai... Será que pode esquecer o que eu disse, então?
— É sobre Set.
— Deus — sussurrei. — De novo não. Ainda desconfia de Amós?
— Você está cega e não vê. Set adora mentiras e armadilhas. É sua maneira favorita de matar.
Em parte, eu sabia que ela estava certa. E você certamente vai pensar que fui tola por não ouvi-la. Mas você já esteve sentado ao lado de alguém que fala mal de um membro de sua família? Mesmo que não seja seu parente preferido, a reação natural é defendê-lo – pelo menos foi essa minha reação, talvez por eu não ter muitos familiares.
— Zia, escute, não consigo acreditar que Amós...
— Não é Amós — argumentou ela. — Mas Set pode dominar a mente e controlar o corpo. Não sou especialista em possessão, mas era um problema muito comum nos velhos tempos. Demônios menores já são difíceis de desalojar. Um deus grande...
— Ele não está possuído! Não pode estar.
Eu me encolhi. Uma dor forte surgiu bem no meio da palma de minha mão, um ardor de queimadura exatamente no local onde eu tinha segurado a pena da verdade pela última vez. Mas eu não estava mentindo! Acreditava mesmo que Amós era inocente... não?
Zia estudou minha expressão.
— Você deseja que Amós esteja bem. Ele é seu tio. E você já perdeu muitos membros da família. Eu entendo.
Queria dizer que ela não sabia de nada, mas seu tom de voz me fez suspeitar que ela já tinha sofrido... talvez mais que eu.
— Não temos escolha — eu disse. — Quanto falta para o amanhecer? Três horas? Amós conhece o melhor caminho para o interior da montanha. Com ou sem armadilha, temos de ir até lá e tentar deter Set.
Eu quase podia ver as engrenagens girando na cabeça de Zia. Ela procurava um jeito,qualquer jeito, de me convencer.
— Tudo bem — disse ela finalmente. — Tentei contar algo a Carter, mas não tive chance. Então, vou contar a você. Justamente aquilo de que você mais precisa para deter Set.
— Você não pode saber o nome secreto dele.
Zia me encarou. Talvez fosse a pena da verdade, mas eu tinha certeza de que ela não estava blefando.
Ela sabia o nome secreto de Set. Ou, pelo menos, acreditava saber.
E, francamente, eu tinha ouvido trechos da conversa entre ela e Carter durante a viagem. Eu não tinha a intenção, mas era difícil não ouvir. Olhei para Zia e tentei acreditar que ela hospedava Néftis, mas não fazia sentido. Eu tinha falado com Néftis. Ela dissera que estava distante, em algum tipo de hospedeiro adormecido. E Zia estava bem ali, na minha frente.
— Vai dar certo — insistiu Zia. — Mas eu não posso fazer o que é necessário. Precisa ser você.
— Por que não usa você o nome? Porque gastou toda sua magia?
Ela ignorou a pergunta.
— Só quero que me prometa que vai usá-lo agora, com Amós, antes de chegarmos à montanha. Pode ser sua única chance.
— E se você estiver errada vamos perder nossa única chance. O livro desaparece assim que é usado, certo?
Zia assentiu, relutante.
— Uma vez lido, o livro desaparece e aparece em outro lugar do mundo. Mas, se você esperar mais, estaremos condenados. Se Set os atrair para sua base de poder, nunca terão força para enfrentá-lo. Sadie, por favor...
— Qual é o nome? Prometo usá-lo na hora certa.
— Agora é a hora certa.
Eu hesitei, esperando que Ísis me dissesse algumas palavras de sabedoria, mas a deusa estava em silêncio. Não sei se eu teria cedido. Talvez as coisas acontecessem de outro jeito se tivesse concordado com o plano de Zia. Mas, antes que eu pudesse fazer essa escolha, as portas do caminhão se abriram e Amós e Carter entraram acompanhados por uma rajada de areia.
— Estamos perto. — Amós sorria como se desse uma boa notícia. — Muito, muito perto.

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