segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 39 - Zia me conta um segredo

PARABÉNS, CARTER, POR ME FAZER PARECER TÃO DRAMÁTICA.
A verdade é menos glamourosa.
Vamos voltar um pouco na história. Quando meu irmão, o guerreiro galinha louca, transformou-se em falcão e subiu pela abertura da pirâmide com seu novo amigo, o morcego de frutas, ele me deixou bancando a enfermeira de duas pessoas muito feridas – situação que não apreciei e na qual nunca fui muito boa.
Os ferimentos do pobre Amós pareciam ser mais mágicos que físicos. Não havia uma única marca em seu corpo, mas seus olhos estavam revirados nas órbitas e ele mal respirava. Vapor se desprendeu da pele dele quando o toquei na testa, por isso decidi que era melhor deixá-lo quieto, pelo menos por ora.
Zia era outra história. O rosto dela estava mortalmente pálido, e ela sangrava, com vários cortes bastante feios na perna. Um dos braços estava torcido num ângulo bem ruim. A respiração fazia um barulho rouco, como se seu peito estivesse cheio de areia molhada.
— Aguente firme. — Rasguei um pedaço do tecido da barra de minha calça e tentei improvisar uma bandagem para a perna dela. — Talvez haja alguma magia de cura ou...
— Sadie... — Ela segurou meu pulso. — Não temos tempo para isso. Escute.
— Se eu puder conter o sangramento...
— O nome dele. Você precisa do nome dele.
— Mas você não é Néftis! O próprio Set já disse.
Ela balançou a cabeça.
— Uma mensagem... Falo com a voz dela. O nome... Dia do Mal. Set nasceu, e aquele foi um Dia do Mal.
Sim, era verdade, mas esse era o nome secreto de Set? O que Zia estava dizendo, sobre não ser Néftis mas falar com a voz dela... não fazia sentido. Mas, em seguida, eu me lembrei da voz no rio. Néftis dissera que me mandaria uma mensagem. E Anúbis me fizera prometer que eu ouviria Néftis.
— Zia, escute... — tentei falar, incomodada.
Foi então que a verdade me atingiu em cheio. Coisas que Iskandar tinha dito, coisas que Tot tinha dito... Tudo se encaixava, formando um todo. Iskandar queria proteger Zia. Ele me dissera que, se tivesse percebido antes que Carter e eu éramos hospedeiros de deuses, poderia ter nos protegido tanto quanto... a alguém. Como Zia. Agora eu entendia como ele tinha tentado protegê-la.
— Oh, céus. — Olhei para ela. — É isso, não é?
Ela parecia me entender, porque assentiu. O seu rosto se contorceu de dor, mas os olhos permaneceram firmes e intensos como sempre.
— Use o nome. Faça Set se curvar diante de sua vontade. Obrigue-o a ajudar.
— Ajudar? Ele tentou matar você, Zia. Não é do tipo que ajuda alguém.
— Vá. — Ela tentou me empurrar. Chamas fracas brotaram de seus dedos. — Carter precisa de você.
Essa era a única coisa que ela podia ter dito para me tirar dali. Carter estava com problemas.
— Eu volto — prometi. — Não... hum, não saia daqui.
Eu me levantei e olhei para a abertura no teto, odiando a ideia de me transformar novamente em papagaio. Depois, meus olhos encontraram o caixão de meu pai enterrado na base do trono. O sarcófago brilhava como alguma substância radiativa e bem perto do ponto de fusão. Se eu pudesse ao menos destruir o trono...
Primeiro precisa cuidar de Set, Ísis me avisou.
Mas se eu puder libertar papai... Dei um passo na direção do trono.
Não, Ísis insistiu. O que talvez você veja é muito perigoso.
Do que está falando?, pensei, irritada. Toquei o caixão dourado. No mesmo instante, fui arrancada da sala do trono para o cenário de uma visão.
Eu estava novamente no Mundo dos Mortos, no Salão do Julgamento. Os monumentos em ruínas de um cemitério em Nova Orleans tremulavam diante de meus olhos. Espíritos dos mortos se moviam na neblina, inquietos. Na base das balanças quebradas, um pequeno monstro dormia – Ammit, o Devorador. Ele abriu um olho amarelo para me estudar, depois voltou a dormir.
Anúbis saiu das sombras. Ele vestia um terno de seda preta com a gravata frouxa, como se voltasse de um funeral ou de uma convenção para coveiros realmente irresistíveis.
— Sadie, não devia estar aqui.
— Como se eu não soubesse — respondi, embora estivesse feliz por vê-lo.
Na verdade, tinha vontade de suspirar de alívio.
Ele segurou minha mão e me levou ao trono vazio.
— Perdemos completamente o equilíbrio. O trono não pode ficar vazio. A restauração do Maat deve começar por aqui, por este salão.
Sua voz soava triste, como se ele me pedisse para aceitar algo terrível. Eu não entendia, mas um profundo sentimento de perda se apoderava de mim.
— Não é justo — falei.
— Não, não é. — Ele afagou minha mão. — Estarei aqui, esperando. Sinto muito, Sadie. De verdade...
Ele começou a desaparecer.
— Espere! — Tentei segurá-lo pela mão, mas sua forma se desfez na neblina do cemitério.
Voltei à sala do trono dos deuses, mas agora o lugar parecia abandonado havia séculos. O teto e metade das colunas tinham caído. Os braseiros estavam frios e enferrujados. O belo piso de mármore estava rachado como o leito seco de um rio.
Bastet estava em pé ao lado do trono vazio de Osíris. Ela sorriu para mim de um jeito meio triste, e vê-la novamente me causou uma dor quase insuportável.
— Não fique triste — ela me censurou. — Gatos não lamentam.
— Mas você não... não está morta?
— Depende. — Ela abriu os braços mostrando o espaço em volta. — O Duat está tumultuado. Os deuses estão há muito tempo sem rei. Se Set não assumir o comando, alguém o fará. O inimigo se aproxima. Não permita que minha morte seja em vão.
— Mas você vai voltar? — perguntei com a voz embargada. — Por favor, eu nem pude me despedir. Não posso...
— Boa sorte, Sadie. Mantenha as garras afiadas. — Bastet desapareceu, e o cenário mudou novamente.
Eu estava no Salão das Eras, no Primeiro Nomo, e Iskandar encontrava-se sentado aos pés do trono – mais um trono vazio – esperando por um faraó que não existia havia dois mil anos.
— Um líder, minha querida — disse ele. — O Maat precisa de um líder.
— É demais — decidi. — São muitos tronos. Não podem esperar que Carter...
— Não sozinho — concordou Iskandar. — Mas essa é a missão de sua família. Vocês começaram o processo. Só os Kane poderão nos salvar ou nos destruir.
— Não sei do que está falando!
Iskandar abriu a mão, e com uma explosão de luz a cena mudou mais uma vez.
Eu estava novamente no Tâmisa. Devia ser madrugada, umas três da manhã, porque a margem estava deserta. A névoa obscurecia as luzes da cidade e o ar era gelado.
Duas pessoas, um homem e uma mulher, estavam encolhidos por causa do frio, de mãos dadas, diante da Agulha de Cleópatra. No início, imaginei que fosse um casal qualquer namorando. Depois, com um susto, percebi que estava vendo meus pais.
Papai ergueu o rosto e fez cara feia ao olhar para o obelisco. À luz fraca dos postes, o rosto dele parecia entalhado em mármore – como os das estátuas dos faraós que ele tanto amava estudar. Ele tinha o rosto de um rei, pensei – orgulhoso e belo.
— Tem certeza? — perguntou ele a minha mãe. — Certeza absoluta?
Mamãe afastou do rosto os cabelos louros. Ela era ainda mais linda que nas fotos, mas parecia preocupada – com as sobrancelhas franzidas, os lábios comprimidos. Como eu, quando ficava aborrecida, ao me olhar no espelho e tentar me convencer de que as coisas não estavam tão ruins. Quis chamá-la, anunciar minha presença, porém não tinha voz.
— Ela me disse que é aqui que começa — respondeu mamãe. Quando ela ajeitou o casaco preto, pude ver o colar em seu pescoço: o amuleto de Ísis, meu amuleto. Olhei-o, impressionada, mas mamãe fechou o casaco e o amuleto desapareceu. — Se quisermos derrotar o inimigo, devemos começar pelo obelisco. Precisamos descobrir a verdade.
Papai franziu o cenho com evidente desconforto. Ele tinha desenhado um círculo protetor em torno dos dois – linhas de giz azul na calçada. Quando ele tocou a base do obelisco, o círculo começou a brilhar.
— Não gosto disso — falou meu pai. — Não quer pedir ajuda a ela?
— Não — insistiu mamãe. — Conheço meus limites, Julius. Se eu tentar novamente...
Meu coração deu um salto. As palavras de Iskandar voltaram ao meu pensamento: “Ela tinha visões que a fizeram buscar orientação em lugares pouco convencionais.” Reconheci a expressão no rosto de minha mãe, e soube: ela havia entrado em comunhão com Ísis.
Por que não me disse?, tive vontade de gritar.
Meu pai evocou o cajado e a varinha.
— Ruby, se falharmos...
— Não podemos falhar — ela o interrompeu. — O mundo depende disso.
Eles se beijaram uma última vez, como se sentissem que aquele era um adeus. Depois, ergueram cajados e varinhas e começaram um encantamento. A Agulha de Cleópatra brilhou com seu poder.
Afastei a mão do sarcófago com um movimento brusco. Meus olhos estavam cheios de lágrimas.
Você conheceu minha mãe, gritei para Ísis. Você a incentivou a abrir aquele obelisco. Você a matou!
Esperei pela resposta. Em vez disso, uma imagem fantasmagórica surgiu diante de mim – uma projeção de meu pai, uma sombra que tremulava à luz do caixão dourado.
— Sadie. — Ele sorriu.
A voz soava metálica e pouco sonora, como quando ele ligava para mim de muito longe... Egito, Austrália ou sei lá.
— Não culpe Ísis pelo destino de sua mãe. Nenhum de nós entendeu exatamente o que aconteceria. Mesmo sua mãe só conseguia ver fragmentos desse futuro. Mas, quando chegou a hora, ela aceitou sua missão. A decisão foi dela.
— Morrer? — perguntei. — Ísis devia tê-la ajudado. Você devia tê-la ajudado. Odeio você!
Assim que terminei de falar, algo se rompeu dentro de mim. Comecei a chorar. Percebi que queria ter dito aquelas palavras a papai havia anos. Eu o responsabilizava pela morte de minha mãe, responsabilizava-o por me deixar. Mas, agora que eu tinha conseguido falar, toda a raiva tinha passado e eu sentia apenas culpa.
— Desculpe. — Solucei. — Eu não queria...
— Não se desculpe, minha menina corajosa. Você tem todo direito de se sentir assim. Precisava desabafar. O que está prestes a fazer... Precisa acreditar que vai agir pelas razões corretas, não porque se ressente contra mim.
— Não sei do que está falando.
Ele estendeu a mão para secar uma lágrima em meu rosto, mas seus dedos eram só luz.
— Sua mãe foi a primeira em muitos séculos a se unir a Ísis. Era perigoso, contra os ensinamentos da Casa, mas sua mãe era uma vidente. Teve uma premonição de que o caos se erguia. E a Casa fracassava. Precisávamos dos deuses. Ísis não era capaz de atravessar o Duat. Ela mal conseguia sussurrar, mas nos disse tudo o que pôde sobre o aprisionamento dos deuses. Ela aconselhou Ruby sobre o que deveria ser feito. Os deuses podiam se erguer novamente, dissera, mas seriam necessários muitos e severossacrifícios. Achamos que o obelisco libertaria todos os deuses, mas aquilo foi só o início.
— Ísis poderia ter dado mais poder à mamãe. Ou Bastet. Bastet ofereceu...
— Não, Sadie. Sua mãe conhecia os próprios limites. Se tivesse tentado hospedar um deus, usar plenamente o poder divino, poderia ter sido consumida ou pior. Ela libertou Bastet e usou o próprio poder para fechar o portal. Sua mãe deu a vida para ganhar tempo para você.
— Para mim? Mas...
— Você e seu irmão têm o sangue mais poderoso que o de qualquer Kane nascido nos últimos três mil anos. Sua mãe estudou a linhagem dos faraós... Ela sabia que isso era verdade. Vocês têm mais chances de reaprender os antigos métodos e restabelecer a paz entre magos e deuses. Sua mãe começou o processo. Eu libertei os deuses da Pedra de Roseta. Mas restaurar o Maat é trabalho para vocês.
— Você pode ajudar. Assim que eu o libertar.
— Sadie, quando você tiver filhos, vai entender melhor tudo isso. Uma de minhas missões mais difíceis como pai, um dos meus maiores deveres, foi perceber que meus sonhos, meus objetivos e desejos são secundários aos de meus filhos. Sua mãe e eu preparamos o cenário. Mas o palco é de vocês. Esta pirâmide foi criada para alimentar o caos. Ela consome o poder de outros deuses e torna Set mais forte.
— Eu sei. Se eu quebrar o trono, se abrir o caixão...
— Vai me salvar, é claro. Mas o poder de Osíris, o poder contido em mim, será absorvido pela pirâmide. Isso só apressaria a destruição e daria mais poder a Set. A pirâmide precisa ser destruída, toda ela. E você sabe como isso deve ser feito.
Eu me preparava para dizer que não sabia, mas a pena da verdade me obrigava a ser sincera. A resposta estava dentro de mim – eu a vira nos pensamentos de Ísis. Sabia o que ia acontecer desde que Anúbis tinha feito aquela pergunta difícil: “Se esse for o preço da salvação do mundo, está preparada para perder seu pai?”
— Não quero — choraminguei. — Por favor.
— Osíris deve ocupar seu trono — meu pai falou. — Pela morte, vida. É o único caminho. Que o Maat a guie, Sadie. Eu amo você.
A imagem dele se dissipou.
Alguém me chamava.
Olhei para trás e vi Zia se mexendo, tentando sentar-se, agarrando a varinha com mão sem forças.
— Sadie, o que está fazendo?
Tudo à nossa volta sacudia. Rachaduras se abriam na parede como se um gigante usasse a pirâmide como saco de pancadas.
Por quanto tempo eu ficara em transe? Não tinha certeza, mas o tempo estava acabando.
Fechei os olhos e me concentrei. A voz de Ísis falou quase imediatamente: Agora você entende? Entende por que eu não podia dizer mais nada?
A raiva cresceu dentro de mim, mas eu a engoli e sufoquei. Falaremos sobre isso mais tarde. Agora, temos um deus para derrotar.
Imaginei-me dando um passo à frente, fundindo-me à alma da deusa.
Já havia compartilhado forças com Ísis antes, mas isso era diferente. Minha determinação, minha raiva, até minha dor, tudo me dava confiança. Encarei Ísis (espiritualmente falando) e nós nos entendemos. Vi toda sua história: os primeiros dias de luta pelo poder, os planos e os truques para descobrir o nome secreto de Rá. Vi seu casamento com Osíris, suas esperanças e os sonhos de um novo império. Depois, vi esses sonhos despedaçados por Set. Senti sua raiva e a amargura, seu orgulho e o instinto de proteger o filho, Hórus. E vi esse mesmo padrão se repetir muitas e muitas vezes ao longo de séculos, em milhares de hospedeiros diferentes.
“Os deuses têm grande poder”, Iskandar dissera. “Mas só os humanos têm criatividade, a capacidade de mudar a história.”
Senti também os pensamentos de minha mãe, entalhados na memória da deusa: os últimos momentos de Ruby e a escolha que ela fizera. Mamãe tinha dado a vida para desencadear uma sequência de eventos. E o próximo movimento era meu.
— Sadie! — Zia gritou novamente, agora com a voz mais fraca.
— Estou bem. Eu já vou.
Zia estudou meu rosto e não gostou do que viu.
— Você não está bem. Está abalada. Lutar contra Set nessas condições é suicídio.
— Não se preocupe, nós temos um plano.
Com isso, eu me transformei em papagaio e voei para o topo da pirâmide, pela abertura no teto.

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