quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Sadie

Capítulo 5 - Uma dança com a morte

Parabéns, Carter. Pelo menos você teve o bom senso de me passar o microfone para as coisas importantes.
Honestamente, ele falou e falou sobre os planos para o Apocalipse, mas não fez nenhum plano para o baile da escola. As prioridades do meu irmão são severamente sem noção.
Eu não acho que estava sendo egoísta por querer ir ao baile. É claro que nós tínhamos sérios problemas para lidar. Este é o motivo pelo qual insisti para ir à festa. Nossos iniciados precisavam levantar a moral. Precisam ter a chance de serem crianças normais, ter amigos e vidas fora da Casa do Brooklyn – algo pelo o que lutar. Até exércitos no campo de batalha lutam melhor quando tiram um tempo para se divertir. Eu tenho certeza que algum general em algum canto já disse isso.
Ao pôr do sol, eu estaria pronta para liderar minhas tropas para a batalha. Eu coloquei um vestido preto bastante confortável e fiz mechas pretas em meu cabelo loiro, com apenas um pouco de maquiagem para o meu look de morta-viva. Calcei simples sandálias para dança (apesar do que Carter diz, eu não uso coturnos todo o tempo, apenas noventa por cento do tempo), coloquei o amuleto de prata tyet da caixa de joias da minha mãe e o pingente que o Walt me deu no meu último aniversário com o símbolo egípcio da eternidade, shen.
Walt tem um amuleto idêntico em sua coleção de talismãs, que nos proporciona uma linha mágica de comunicação, e além da habilidade de invocar a outra pessoa para o nosso lado em emergências.
Infelizmente, os amuletos shen não significam que estamos namorando, exclusivamente. Ou namorando de qualquer outra maneira. Se Walt tivesse me perguntado, acho que ficaria bem com isso.
Walt é tão gentil, deslumbrante – perfeito, realmente, na maneira dele. Talvez se ele tivesse se acertado um pouco mais, eu teria me apaixonado por ele e seria capaz de deixar o outro garoto, o divino.
Mas Walt estava morrendo. Ele tinha essa ideia boba que seria injusto para mim se nós começássemos um relacionamento nestas circunstâncias. Como se isso fosse me parar. Então nós estamos estancados nesse ciclo vicioso – paquerando, conversando por duas horas, em alguns momentos, um beijo, quando baixamos nossa guarda – mas normalmente Walt sempre me afasta e me solta.
Por que as coisas não podiam ser simples?
Estou dizendo isso porque eu literalmente corri para Walt quando desci as escadas.
— Oh! — eu disse. Então notei que ele estava vestindo a sua camiseta velha, jeans e nenhum sapato. — Você ainda não está pronto?
— Eu não vou.
Meu queixo caiu.
— O quê? Por quê?
— Sadie... você e Carter precisarão de mim quando forem visitar Tot. Se eu tiver mesmo que ir, tenho que descansar.
— Mas...
Eu me forcei a parar. Não era certo eu pressioná-lo. Eu não precisava de mágica para ver que ele realmente estava com uma grande dor.
Séculos de conhecimento de magia de cura a nossa disposição, e ainda tudo que nós tentamos parecia não ajudar Walt. Eu te pergunto: Qual é o objetivo de ser uma maga se você não pode brandir a sua varinha e fazer com que as pessoas que você se importa se sintam bem?
— Certo. Eu... eu estava apenas esperando...
Alguma coisa que eu disse deve ter soado rude. Eu queria dançar com ele. Deuses do Egito, eu me vesti para ele. Os garotos mortais da escola eram tudo de bom, eu presumo, mas eles parecem menos interessantes comparado à Walt (ou, sim, tudo bem, comparados a Anúbis). Quanto aos outros meninos da Casa do Brooklyn – dançar com eles teria me deixado estranha, como se eu dançasse com meus primos.
— Eu poderia ficar — ofereci, mas acho que não saiu muito convincente.
Walt deu um leve sorriso.
— Não, vá, Sadie. De verdade. Eu tenho certeza que me sentirei melhor quando você voltar. Se divirta.
Ele passou por mim e subiu os degraus.
Eu respirei fundo. Parte de mim queria ficar e cuidar dele. Ir sem ele não parecia certo. Então olhei para baixo para o grande salão. As outras crianças estavam brincando e conversando, preparadas para sair. Se eu não fosse, elas provavelmente iriam se sentir obrigadas a ficar também.
Alguma coisa como cimento molhado se firmou no meu estômago. Toda a alegria e excitação em mim de repente vieram à tona para a noite. Por meses eu venho lutando para ajustar a vida em Nova York depois de muitos anos em Londres. Tenho me esforçado para balancear a vida de uma jovem maga com a de ser uma garota de escola. Agora, quando esse baile pareceu me oferecer a chance de combinar esses dois mundos e ter uma noite maravilhosa, minhas esperanças são despedaçadas. E eu ainda tinha que ir e fingir estar me divertindo. Mas eu só faria isso por que é o meu dever, para fazer os outros se sentirem bem.
Eu imaginava se isso seria o que um adulto sentia. Horrível.
A única coisa que me alegrou foi Carter. Ele saiu do quarto dele como um professor júnior, em um casaco e gravata, camisa e calça social. Coitado – é claro que ele nunca esteve em um baile mais do que ele esteve em uma na escola. Ele não tinha qualquer ideia.
— Você está... maravilhoso — tentei deixar minha cara séria. — Você sabe que isso não é um funeral?
— Cala a boca — ele resmungou. — Vamos acabar com isso.

***

A escola que eu e as crianças frequentamos era a Brooklyn Academy, uma escola de superdotados mais conhecida pelos alunos como BAG. Sim, como saco em inglês. Nós não parávamos de fazer piada com isso. Os estudantes eram baggies. As garotas glamourosas com narizes refeitos por plásticas e lábios com botox eram bags plásticas. Nossos ex-alunos eram bags velhos. E naturalmente, nossa diretora, Sra. Laird, era a Lady Bag.
Apesar do nome, a escola era muito boa. Todos os estudantes eram superdotados em arte, música ou teatro. Nossos horários eram flexíveis, com muito tempo de estudo independente. O que funciona perfeitamente para nós magos. Nós poderíamos ir batalhar com monstros, se necessário e, como magos, não era difícil para nós passarmos por superdotados.
Alyssa usava sua magia de terra para fazer esculturas. Walt se especializou em joias. Cleo era uma incrível escritora, desde que ela podia recontar as histórias que tinham sido esquecidas desde os dias do Egito Antigo. Para mim, eu não precisava de mágica. Eu era natural para o teatro.
[Para de rir, Carter.]
Você pode não esperar isso no meio do Brooklyn, mas nosso campus era como um parque, com quilômetros quadrados de gramados verdes, árvores bem cuidadas e até um pequeno lago com patos e cisnes.
O baile estava acontecendo em um pavilhão em frente do prédio de administração. Uma banda tocava na varanda. Luzes foram colocadas nas árvores. Professores-inspetores caminhavam no perímetro “Patrulha do Arbusto”, para ter certeza que nenhum dos alunos mais velhos iria para os arbustos.
Eu tentei não pensar sobre isso, mas a música e a multidão me lembravam da noite anterior em Dallas – um estilo diferente de festa, que tinha acabado mal. Me lembrei de JD Grissom apertando minha mão, desejando-me sorte antes de correr para salvar sua esposa.
Uma culpa horrível brotou dentro de mim. Eu forcei esse sentimento para baixo. Não faria nenhum bem me lembrar do Grissom e começar a chorar no meio do baile. E certamente não ajudaria meus amigos a se divertir.
Quando nosso grupo se dispersou na multidão, eu me virei para Carter, que estava perdendo tempo com sua gravata.
— Certo — eu disse. — Você precisa dançar.
Carter me olhou com horror.
— O quê?
Eu chamei uma das minhas amigas mortais, uma adorável menina chamada Lacy. Ela era um ano mais nova que eu, então olhou para mim agradecida. (Eu sei, é difícil não se sentir agradecida.)
Ela tinha tranças loiras bonitas, aparelho nos dentes e era possivelmente a única pessoa no baile mais nervosa que meu irmão. Ela tinha visto fotos de Carter antes, contudo, e parecia achar ele gostoso. Eu não usei isso contra ela. Em muitos aspectos, ela tinha bom gosto.
— Lacy, Carter — eu os apresentei.
— Você parece como nas suas fotos! — Lacy sorriu.
As faixas em seus braços estavam alternando rosa e branco para combinar com o seu vestido.
Carter disse:
— Uh...
— Ele não sabe dançar —contei para Lacy. — Eu ficaria agradecida se você o ensinasse.
— Certo! — ela gritou.
Ela segurou a mão do meu irmão e o levou embora.
Comecei a me sentir melhor. Talvez eu pudesse me divertir hoje à noite, apesar de tudo.
Então me virei e me encontrei cara a cara com um das minhas mortais não tão favoritas – Drew Tanaka, a garota popular, com seu esquadrão de supermodelos.
— Sadie! — Drew me abraçou. Seu perfume era uma mistura de rosas com gás lacrimogêneo. — Estou tão feliz que você está aqui, querida. Se eu soubesse que você viria, poderia ter vindo na limusine com a gente.
Suas amigas fizeram um simpático “Aww” e sorriram para mostrarem que elas não estavam sendo totalmente sinceras. Elas estavam vestidas mais ou menos do mesmo jeito, no mínimo foi do mesmo estilista que seus pais sem dúvida encomendaram as roupas durante a última semana da moda.
Drew era a mais alta e glamourosa (eu uso a palavra como um insulto) com delineador rosa horrível e cachos negros enrolados que eram aparentemente da própria Drew para trazer de volta as permanentes dos anos 80. Ela usava o pingente – uma platina de brilhantes e diamante em formato de D – possivelmente sua inicial ou sua nota média.
Eu dei aquele sorriso para ela.
— Uma limusine, uau. Obrigada por isso. Mas entre você, suas amigas e seus egos, duvido que teria espaço extra.
Drew fez um beicinho.
— Isso não é legal, docinho! Onde está o Walt? O pobre bebê ainda está doente?
Do lado dela, algumas das garotas tossiram nas mãos, imitando Walt.
Eu queria puxar meu cajado do Duat e transformá-las em minhocas. Tinha certeza que poderia fazer isso, e eu duvidada que alguém sentiria falta delas, mas mantive meu temperamento sob controle.
Lacy tinha me avisado sobre Drew no meu primeiro dia de aula. Aparentemente, as duas tinham ido juntas a um acampamento de verão – blah, blah, eu realmente não escutei os detalhes – e Drew tinha sido uma grande tirana.
Isso não significa, entretanto, que ela poderia ser uma tirana comigo.
— Walt está em casa — respondi. — Eu disse a ele que você estaria aqui. Engraçado, isso não pareceu motivá-lo.
— Que vergonha — Drew suspirou. — Você sabe, talvez ele não esteja realmente doente. Ele provavelmente só é alérgico a você, docinho. Isso acontece. Eu deveria ir para lá com uma canja de galinha ou outra coisa. Onde ele mora?
Ela sorriu suavemente. Eu não sabia se ela realmente fantasiava com Walt ou se fingia por que me odiava. De qualquer maneira, a ideia de transformá-la em uma minhoca estava se tornando mais atraente.
Antes que eu fizesse alguma coisa, uma voz familiar atrás de mim disse.
— Oi, Sadie.
As outras garotas deram um suspiro coletivo. Minha pulsação foi de câmera lenta para uma arrancada de 50 metros. Eu me virei e encontrei – sim, de verdade – o deus Anúbis entrou de penetra no nosso baile.
Ele tinha um jeito de parecer maravilhoso como sempre. Ele é tão irritante desse jeito. Vestia calças pretas finas com botas pretas de couro e uma jaqueta de motociclista sobre uma camisa do Arcade Fire. Seu cabelo preto era naturalmente bagunçado como se ele tivesse acabado de acordar, e lutei contra o impulso de mover os meus dedos para os seus cabelos. Seus olhos castanhos brilhavam de alegria. Ou ele estava feliz em me ver, ou ele gostava de me ver nervosa.
— Oh... meu... Deus — Drew lamentou. — Quem...
Anúbis a ignorou (sorte dele) e estendeu o seu cotovelo para mim, um doce gesto à moda antiga.
— Posso ter essa dança?
— Acho que sim — respondi o mais desinteressada que pude.
Eu enrolei meu braço aos dele, e nós deixamos as bags plásticas atrás de nós, todas murmurando.
— Oh meu Deus! Oh meu Deus!
Não, sério. Eu queria dizer. Ele é o meu maravilhoso deus gostoso. Encontre o de vocês.
As pedras irregulares de pavimentação faziam a pista de dança perigosa. Em toda a nossa volta, as crianças estavam tropeçando umas nas outras. Anúbis não se importou quando todas as meninas se viraram e ficavam de boca abertas por ele enquanto ele me levava para multidão.
Eu estava feliz por Anúbis ter meu braço. Minhas emoções estavam tão embaralhadas que me senti tonta. Eu estava ridiculamente feliz que ele estava aqui. Me senti muito culpada por Walt estar em casa e eu aqui passeando com Anúbis. Mas eu estava aliviada que Walt e Anúbis não estavam aqui juntos. Seria mais do que esquisito. O alívio me fez sentir culpada e assim por diante. Deuses do Egito, eu era uma bagunça.
Quando chegamos ao meio da pista de dança, a banda de repente trocou de uma música agitada para uma balada romântica.
— Você que está fazendo isso? — perguntei a Anúbis.
Ele sorriu, o que não era muito uma resposta. Ele colocou uma mão no meu quadril e apertou minha outra mão, como um devido cavalheiro. Nós dançamos juntos.
Eu tinha ouvido falar de levitar, mas eu levei alguns momentos para perceber que nós estávamos realmente levitando – alguns milímetros do chão, o suficiente para ninguém perceber, só o necessário para nós deslizarmos pelas pedras enquanto os outros tropeçavam.
A alguns metros, Carter parecia meio esquisito depois que Lacy lhe mostrou como dançar música lenta. [Realmente, Carter, isso não é física quântica.]
Eu olhei fixamente para os olhos marrons quentes de Anúbis e seus lábios intensos. Ele me beijou uma vez – no meu aniversário, primavera passada – e eu nunca tive mais que isso. Você pode pensar que o deus da morte tem lábios frios, mas esse não era o caso.
Eu tentei clarear a minha cabeça. Eu sabia que Anúbis estava aqui por alguma razão, mas era horrivelmente difícil manter o foco.
— Eu pensei... hum.
Oh, brilhante, Sadie. Eu pensei. Vamos tentar uma frase completa agora, pode ser?
— Eu pensei que você só podia aparecer em locais de morte.
Anúbis sorriu gentilmente.
— Este é um local de morte, Sadie. A batalha de Brooklyn Heights, 1776. Centenas de tropas americanas e britânicas morreram bem aqui, onde estamos dançando.
— Que romântico — murmurei. — Então estamos dançando sobre suas sepulturas?
Anúbis balançou a cabeça.
— A maioria não recebeu um sepultamento correto. Este é o porquê que eu decidi te visitar aqui. Esses fantasmas poderiam aproveitar uma noite de entretenimento, como os seus iniciados.
De repente, espíritos estavam girando ao nosso redor – aparições luminosas em roupas do século XVIII. Alguns usavam o uniforme vermelho britânico. Outros tinham trajes rasgados da milícia. Eles davam voltas com as senhoras fantasmas em vestidos de seda ou agrícolas extravagantes. Algumas das mulheres tinham cabelos encaracolados que fariam Drew ter inveja.
Os fantasmas pareciam estar dançando uma música diferente. Eu apurei meus ouvidos e pude ouvir fantasmagoricamente violinos e violoncelos.
Nenhum dos mortais parecia notar a invasão espectral. Até meus amigos da casa do Brooklyn estavam indiferentes. Eu assisti um casal de fantasmas valsarem na direção de Carter e Lacy.
Enquanto Anúbis e eu dançávamos, a Brooklyn Academy parecia desaparecer e os fantasmas se tornarem mais reais.
Um soldado tinha uma ferida de mosquete no peito. Um oficial britânico tinha uma machadinha brotando de sua peruca. Nós dançamos entre os mundos, valsando de um lado para o outro sorrindo. Anúbis com certeza sabia como fazer uma menina se divertir.
— Você está fazendo de novo — falei. — Levando-me fora do mundo, ou como quiser chamar.
— Um pouco — ele admitiu. — Nós precisamos conversar. Eu prometi que te visitaria em pessoa...
— E você veio.
— ...mas isso irá causar um problema. Esta pode ser a última vez que posso ver você. Existem murmúrios em relação a nossa situação.
Estreitei meus olhos. Estaria o deus da morte ficando vermelho?
— Nossa situação — repeti.
— Nós.
A palavra deixou minhas orelhas zumbindo. Eu tentei manter minha voz.
— Até onde eu sei, não existe nenhum “nós”, oficialmente. Por que esta seria a última vez que podemos conversar?
Ele com certeza estava ficando vermelho agora.
— Por favor, só escute. Tem muita coisa que eu preciso te contar. Seu irmão tem a ideia certa. A sombra de Apófis é a sua melhor esperança. Tot pode guiar vocês um pouco, mas duvido que ele revele os feitiços secretos. É muito perigoso.
— Espera, espera.
Eu ainda estava processando sobre o comentário de “nós”, e a ideia que esta pode ser a última vez que eu veja Anúbis. Isso deixou meus neurônios em pânico, milhares de Sadie correndo no meu crânio, gritando e balançando os seus braços. Eu tentei me focar.
— Você quer dizer que Apófis tem uma sombra? Isso poderia ser usado para execrar...
— Por favor, não use essa palavra — Anúbis fez uma careta. — Mas sim, todas as entidades inteligentes tem almas, então todas tem sombras, até Apófis. Eu sei muito sobre isso, sendo eu o guia da morte. Tenho que fazer das almas o meu negócio. Poderia usar a alma dele contra ele? Em teoria, sim. Mas existem muitos perigos.
— Naturalmente.
Anúbis girou-me através de um par de fantasmas coloniais. Outros estudantes nos assistiam, sussurrando enquanto dançávamos, mas suas vozes estavam distantes e distorcidas, como se eles estivessem lá longe, do outro lado da queda d’água.
Anúbis me estudou com uma espécie de arrependimento carinhoso.
— Sadie, eu não mandaria você nesse caminho se tivesse outro jeito. Eu não quero que você morra.
— Eu concordo com isso.
— Ainda mais falando que este tipo de mágica é proibida — ele avisou. — Mas você precisa saber com o que está lidando. O sheut é a parte menos entendida da alma. É... como vou explicar... é uma alma de último recurso, uma imagem de força de vida da pessoa. Você ouviu que as almas dos cruéis são destruídas no Salão do Julgamento...
— Quando Ammit devora seus corações.
— Sim — Anúbis aumentou sua voz. — Nós dissemos que isso destrói completamente a alma. Mas não é verdade. A sombra permanece. Ocasionalmente, não muitas vezes, Osíris decide, ah, rever o julgamento. Se alguém fosse declarado culpado, mas novas evidências aparecem, deve-se ter uma maneira de resgatar a alma do esquecimento.
Eu tentei compreender aquilo. Meus pensamentos estavam suspensos no ar como os meus pés, incapazes de se conectar com alguma coisa sólida.
— Então... você está dizendo que a sombra pode ser usada para, hum, reiniciar uma alma? Como um backup de computador?
Anúbis me olhou estranho.
— Ugh me desculpe — suspirei. — Eu tenho passado muito tempo com meu irmão nerd. Ele fala como um computador.
— Não, não — Anúbis disse. — É que é uma boa analogia. Eu só nunca pensei dessa maneira. Sim, a alma não é completamente destruída até que sua sombra seja destruída, então em casos extremos, com a magia certa, é possível reiniciar a alma usando-aReciprocamente, se você fosse destruir uma alma de um Deus, ou até a alma de Apófis com parte de uma exe... hum, o feitiço que você mencionou...
— O sheut seria infinitamente mais poderoso que uma estátua normal — adivinhei. — Nós poderíamos destruí-lo, possivelmente sem destruir nós mesmos.
Anúbis olhou em volta nervoso.
— Sim, mas você pode ver o porquê deste tipo de magia é secreta. Os deuses nunca iriam querer tanto conhecimento nas mãos de magos mortais. Este é o porquê que nós sempre escondermos nossas sombras. Se um mago fosse capaz de capturar um sheutde um Deus e usá-lo para nos ameaçar...
— Certo — minha boca estava seca. — Mas eu estou do seu lado. Eu só usaria o feitiço em Apófis. Com certeza Tot entenderá isso.
— Talvez — Anúbis não soava convincente. — Converse com Tot, pelo menos. Esperemos que ele veja a necessidade de ajudá-la. Temo que você possa precisar de um guia melhor... mas um guia perigoso.
Eu engoli em seco.
— Você disse que só uma pessoa poderia nos ensinar a magia. Quem?
— O único mago doido o suficiente para pesquisar tal feitiço. Seu julgamento é amanhã ao pôr do sol. Você terá que visitar seu pai antes disso.
— Espera. O quê?
O vento soprou através do pavilhão. A mão de Anúbis apertou a minha.
— Nós temos que nos apressar — ele disse. — Tem mais que eu preciso te contar. Alguma coisa está acontecendo com os espíritos dos mortos. Eles estão sendo... Olhe, ali!
Ele apontou para um par de espectros próximos. A mulher dançava descalça com um simples vestido de linho branco. O homem vestia calças e um casaco como um camponês colonial, mas seu pescoço estava inclinado em um ângulo engraçado, como se ele tivesse sido enforcado. Uma névoa preta se enrolou ao redor das pernas do homem como hera. Outros três passos de valsa, e ele estava completamente envolvido. Os tentáculos sombrios puxaram-no para o solo, e ele desapareceu. A mulher de branco continuou dançando sozinha, aparentemente não notou que o seu parceiro tinha sido consumido por dedos malvados de névoa.
— O que... o que foi isso? — perguntei.
— Nós não sabemos. — Anúbis disse. — Conforme Apófis se fortalece, está acontecendo mais frequentemente. Almas dos mortos estão desaparecendo, sendo puxadas para o fundo do Duat. Nós não sabemos para onde elas vão.
Eu quase tropecei.
— Minha mãe. Ela está bem?
Anúbis me deu um olhar de dor, e eu soube a resposta. Minha mãe tinha me avisado – nós podemos nunca mais nos ver de novo a não ser que descubramos um jeito de derrotar Apófis. Ela me mandou aquela mensagem incitando-me a encontrar a sombra da serpente. Isso tinha que estar conectado com o seu dilema de alguma forma.
— Ela está desaparecida — adivinhei. Meu coração bateu contra minhas costelas. — Tem alguma coisa a ver com esse negócio de sombras, não tem?
— Sadie, eu gostaria de saber. Seu pai está... ele está tentando o seu melhor para encontrá-la, mas...
O vento o interrompeu.
Alguma vez você colocou sua mão para fora de um carro em movimento e sentiu o ar contra você? Foi como isso, mas dez vezes mais poderoso. Uma força empurrou Anúbis e eu para longe. Eu cambaleei para trás e eu não estava mais levitando.
— Sadie... — Anúbis estendeu a mão, mas o vento o empurrou para longe.
— Parem com isso! — disse uma voz guinchando entre nós. — Sem demonstrações de afeto na minha frente!
O ar tomou uma forma humana. A princípio eu só vi uma débil silhueta. Então se tornou mais sólido e colorido. Diante de mim, havia um homem com capacete de aviador antigo, com roupas de couro, óculos, cachecol, casaco e uma jaqueta de bombardeio, como fotos que eu tinha visto de pilotos da Força Aérea durante a Segunda Guerra Mundial.
Ele não é de carne e osso, pensei. Sua forma rodou e mudou. Percebi que ele era feito a partir do lixo: partículas de sujeira, pedaços de papel, folhas secas – tudo colado tão junto que de uma distância teria se passado por um mortal.
Ele apontou o dedo para Anúbis.
— Este é o insulto final, garoto! — Sua voz sibilou como o ar de um balão. — Você foi avisado várias vezes.
— Espera. Quem é você? E Anúbis é de longe um garoto. Ele tem cinco mil anos.
— Exatamente — o aviador vociferou. — Uma mera criança. E eu não dei permissão para você falar, garota!
O aviador explodiu. A explosão foi tão poderosa que minhas orelhas estalaram e eu caí sobre meu traseiro. Ao meu redor, os outros mortais – meus amigos, professores, e todos os estudantes – simplesmente desmaiaram. Anúbis e os fantasmas não sentiram o efeito. O aviador se formou de novo, olhando para mim.
Eu me forcei de pé e tentei invocar meu cajado do Duat. Sem sorte.
— O que você fez? — exigi.
— Sadie, está tudo bem — Anúbis disse. — Seus amigos estão apenas inconscientes.
Shu apenas diminuiu a pressão do ar.
— Shoe? — perguntei. — Sapato em inglês? Que sapato?
Anúbis pressionou seus dedos nas suas têmporas.
— Sadie... este é Shu, meu tataravô.
Então me ocorreu: Shu era um desses nomes ridículos de deuses que eu ouvi antes. Eu tentei encaixá-lo.
— Ah. O Deus das... sandálias. Não, espera. Balões que vazam. Não...
— Ar! — Shu sibilou. — Deus do ar!
Seu corpo se dissolveu em um tornado de detritos. Quando se formou de novo, ele estava com a roupa do Egito Antigo – de peito nu com uma tanga branca e uma pena de avestruz gigante brotando da sua bandana trançada.
Ele mudou de volta para a roupa da Força Aérea.
— Fique com o traje de piloto — eu disse. — A pena de avestruz realmente não combina com você.
Shu fez um som não amigável.
— Eu prefiro ser invisível, muito obrigado. Mas vocês mortais poluíram tanto o ar, que está ficando cada vez mais difícil. É terrível o que vocês fizeram nos últimos milênios. Vocês não escutaram sobre o dia “Poupe o ar”? Carona? Motores híbridos? E não me deixe começar a falar das vacas. Você sabia que toda vaca arrota e peida mais de uma centena de litros de metano por dia? Existe um bilhão e meio de vacas no mundo. Você tem ideia do que isso causa para o meu sistema respiratório?
— Hum...
Do bolso da jaqueta, Shu produziu um inalador e sobrou sobre ele.
— Chocante!
Eu levantei uma sobrancelha para Anúbis, que parecia mortalmente embaraçado (ou talvez imortalmente embaraçado).
— Shu — ele disse. — Nós estávamos apenas conversando. Se você nos deixar terminar.
— Oh, conversando! — Shu berrou, sem dúvida liberando seu próprio metano. — Enquanto seguravam as mãos, dançavam, e outros comportamentos degenerativos. Não banque o inocente, garoto. Eu fui um acompanhante antes, você sabe. Eu mantive seus avós separados por éons.
De repente lembrei da história de Nut e Geb, o céu e a terra. Rá mandou o pai de Nut, Shu, manter os dois amantes separados para então eles nunca terem filhos que um dia poderiam usurpar o trono de Rá. Essa estratégia não funcionou, mas aparentemente Shu ainda estava tentando.
O deus do ar acenou sua mão em desgosto para os mortais inconscientes, alguns dos quais estavam começando a se mexer.
— E agora, Anúbis, eu encontro você neste covil de perversidade, este emaranhado de comportamento questionável, este... este...
— Colégio? — propus.
— Sim! — Shu acenou com a cabeça vigorosamente, sua cabeça se desintegrou em uma nuvem de folhas. — Você ouviu o decreto dos deuses, garoto. Você se tornou inteiramente próximo desta mortal. Está proibido de mais contato!
— O que? — gritei. — Isso é ridículo! Quem decretou isso?
Shu fez o som de um estouro de pneu. Ou ele estava sorrindo ou me dando um vento com cheiro framboesa.
— O conselho inteiro, menina! Liderado pelo lorde Hórus e lady Ísis!
Me senti como se eu estivesse me dissolvendo em pedaços de lixo.
Ísis e Hórus? Eu não podia acreditar. Esfaqueada pelas costas pelos meus dois supostos amigos. Ísis e eu iríamos ter uma conversinha sobre isso.
Eu me virei para Anúbis, esperando que ele me dissesse que era mentira.
Ele levantou as mãos miseravelmente.
— Sadie, eu estava tentando te contar. Não é permitido que deuses se tornem diretamente... hum, envolvidos com mortais. Isso só é possível quando um deus habita uma forma humana, e... e como você sabe, eu nunca trabalhei desse jeito.
Eu rangi meus dentes. Queria argumentar que o Anúbis tinha uma forma agradável, mas ele me contou que só podia se manifestar em sonhos, ou em lugares de morte. Diferente dos outros deuses, ele tinha não tido um hospedeiro humano.
Isso era muito injusto. Nós nem namoramos apropriadamente. Apenas um beijo, há seis meses, e Anúbis estava banido de me ver para sempre?
— Você não pode estar falando sério. — Eu não tenho certeza quem me deixou com raiva, o deus do ar acompanhante agitado ou o próprio Anúbis. — Você não vai realmente deixar que eles te regrem desse jeito?
— Ele não tem escolha! — Shu exclamou.
O esforço o fez tossir forte, seu peito explodiu em dentes-de-leão. Ele tomou outro sopro do inalador.
— Nível de oxigênio do Brooklyn... lastimável! Agora, você, Anúbis. Sem contato com esta mortal. Não é apropriado. E você, menina, fique longe dele! Você tem coisas mais importantes para fazer.
— Oh, sim? — eu disse. — E você, senhor Tornado de Lixo? Nós estamos preparando uma guerra, e a coisa mais importante que você pode fazer é manter as pessoas sem valsar?
A pressão do ar aumentou de repente. Sangue rugiu na minha cabeça.
— Vê aqui, menina. — Shu rosnou. — Eu até agora a ajudei mais do que você merece. Eu atendi a reza do garoto russo. E trouxe-o aqui por todo o caminho de St. Petersburgo para falar com você. Então, xô!
O vento soprou nas minhas costas. Os fantasmas foram soprados como fumaça. Os mortais inconscientes começaram a se mexer, protegendo seus rostos dos detritos.
— Garoto russo? — gritei sobre o vendaval. — Que diabos você está falando?
Shu se dissolvia em lixo e girava em torno de Anúbis, levantando-o no ar.
— Sadie! — Anúbis tentou lutar o seu caminho em direção a mim, mas a tempestade era forte demais. — Shu, pelo menos me deixe contá-la sobre Walt! Ela tem o direito de saber!
Eu mal podia ouvi-lo pelo vento.
— O que você disse? Walt? — gritei. — O que tem ele?
Anúbis disse alguma coisa que eu não pude entender. Eu fiquei sozinha na pista de dança, cercada por dúzias de crianças e adultos que acabaram de acordar.
Eu estava a ponto de correr para Carter para ter certeza que ele estava bem. [Sim, Carter, honestamente eu estava.]
Então, no limite do pavilhão, um homem novo entrou na luz.
Ele usava uma roupa cinza militar com um casaco de lã muito pesado para a noite quente de setembro. Suas orelhas enormes pareciam ser as únicas coisas segurando seu chapéu de grandes dimensões. Um rifle estava pendurado em seu ombro. Ele não poderia ter mais do que 17 anos, definitivamente não era de nenhuma das escolas do baile, ele parecia vagamente familiar.
St. Petersburgo. Shu disse.
Sim. Eu conheci esse garoto brevemente primavera passada. Carter e eu estávamos correndo do Museu Hermitage. Este garoto tentou parar-nos. Ele estava disfarçado de guarda, mas se revelou como um mago do Nomo da Rússia – um dos serviçais do malvado Vlad Menshikov.
Eu peguei meu cajado do Duat – com sucesso dessa vez.
O garoto levantou suas mãos em rendição.
— Nyet! — ele suplicou. Então, em um inglês travado, ele disse — Sadie Kane. Nós... precisamos... conversar...

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